O veneno da aranha armadeira, uma das espécies mais perigosas do mundo, pode se tornar um aliado no tratamento de diferentes tipos de câncer, tanto em humanos quanto em animais. Essa descoberta é fruto de pesquisas lideradas por Catarina Raposo, pesquisadora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que investiga o uso de venenos de animais peçonhentos para o desenvolvimento de medicamentos.
A armadeira, conhecida cientificamente como Phoneutria nigriventer, é nativa da América do Sul e seu veneno pode ser letal para crianças, além de causar dores abdominais, náuseas e convulsões em adultos. O interesse de Raposo pelo veneno se deve à sua ação no sistema nervoso central, que pode abrir temporariamente a barreira hematoencefálica, uma estrutura que protege o cérebro e impede a entrada de várias substâncias nos neurônios. Essa barreira é uma limitação para tratamentos, pois muitos medicamentos não conseguem alcançar o sistema nervoso central e, consequentemente, não conseguem atingir os tumores.
Os testes realizados mostraram que o veneno tem a capacidade de abrir essa barreira por cerca de 12 horas, permitindo que o tratamento atue diretamente nas células tumorais, especialmente nos astrócitos, que são células da glia. Para coletar o veneno de forma segura, Catarina contou com a colaboração do biólogo Thomaz Rocha e Silva, que utiliza um método que envolve anestesiar a aranha com gelo seco e estimulá-la com um leve choque elétrico, garantindo a segurança do animal.
Para os estudos, foram coletadas amostras de células tumorais de pacientes atendidos pelo neurocirurgião João Luiz Vitorino Araujo, coordenador do Setor de Neurocirurgia Oncológica da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. A biomédica Natália Barreto dos Santos, responsável por essa etapa do estudo, descobriu que o veneno apresentava respostas diferentes em várias amostras de gliomas, permitindo também testes em outros tipos de tumor, como o câncer de mama. As amostras coletadas foram adicionadas à coleção de células tumorais da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, que já possui 60 tipos diferentes de linhagens tumorais.
Após comprovar a eficácia do veneno bruto, os pesquisadores decidiram isolar as moléculas responsáveis pela ação. O veneno é uma mistura de substâncias, e o grupo conseguiu identificar dois compostos principais, denominados LW9 e LW11, que foram reproduzidos em laboratório com os mesmos efeitos do veneno natural. Essa síntese artificial facilita a produção de medicamentos no futuro, permitindo uma aplicação em maior escala sem a necessidade de extração de veneno de aranhas.
Os testes clínicos já estão em andamento com camundongos e os resultados têm sido promissores. O próximo passo será testar o tratamento em cães com câncer antes de avançar para ensaios clínicos em humanos. A pesquisadora expressa o desejo de que, após a aprovação de todas as etapas dos testes, o medicamento possa ser disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Embora seja difícil falar em cura para o câncer devido à complexidade da doença, Raposo acredita que seu medicamento pode ajudar a controlar a progressão da enfermidade.
O uso de venenos para tratamento não é uma novidade, com registros em culturas chinesa, indiana e entre povos originários. No entanto, o potencial terapêutico dessas moléculas ainda é pouco explorado pela ciência. Apenas 3% dos medicamentos aprovados pelo Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos têm origem animal, e apenas 0,01% das moléculas desses venenos foi estudada até agora. A pesquisadora ressalta a grande potência que os venenos possuem para a cura e tratamento, sendo uma mistura poderosa de moléculas.
Crédito da foto: Jéssica Stuque/g1 e Palakorn Jaiman/Freepik. Fonte: g1.