A transgeneridade modifica a forma como os corpos, os sexos e as famílias são vistos socialmente. Com útero, homens trans ampliam as definições da palavra “gestante”, que precisa ser atualizada, inclusive, nos dicionários mais conhecidos. Essa nova forma de gestar ainda busca romper o cordão umbilical que liga a sociedade à visão limitada de quem pode gerar uma criança. Esta é a segunda reportagem da série “Saúde Transformada”, publicada no g1, que aborda as diversas questões que envolvem as pessoas trans e o acesso à saúde.
O artista e assistente audiovisual Beijamin Aragão compartilha os desafios enfrentados ao gestar seu filho. Para ele, que não imaginava engravidar, a descoberta da gestação em 2025 trouxe um novo cenário. “Não era algo que passava pela minha cabeça porque, na época, eu fazia uso de testosterona. Então, não era algo que eu imaginava que poderia acontecer comigo”, afirmou Beija, como é conhecido. Ele, um homem trans, se tornou pai de uma criança fruto da relação com a produtora cultural Ella Monstra, que é travesti. Os desafios da paternidade começaram para Beija ainda na fase da gravidez, quando precisou lidar com as mudanças no corpo e as barreiras sistêmicas que consideram a gravidez apenas de mulheres cisgênero.
Beija possui plano de saúde, mas a falta de entendimento sobre a gravidez de homens trans complicou seu acesso aos serviços. “No plano, a maior dificuldade foi o sistema entender a possibilidade de um homem trans engravidar, porque eu já sou retificado, todos os meus documentos já são retificados enquanto gênero masculino, e o próprio plano não me possibilitava marcar uma consulta com uma obstetra”, reclamou o artista. Ele precisou ir à central do plano para alterar seu gênero de masculino para feminino para conseguir marcar a consulta.
Um artigo publicado na “Physis: Revista de Saúde Coletiva” revelou que as experiências nos serviços de saúde para homens trans que desejam engravidar são complexas. A pesquisa, realizada por instituições de ensino superior do Ceará e do Rio Grande do Norte, destacou que as investigações sobre saúde reprodutiva de homens trans no Brasil são incipientes, refletindo uma sociedade ainda moralista e conservadora que tenta apagar a vida de pessoas trans e nega seus direitos reprodutivos.
As dificuldades enfrentadas por Beija não terminaram com o parto. Na maternidade, mais uma burocracia dificultou o registro do recém-nascido. “Quando a criança nasce, ela recebe uma Declaração de Nascido Vivo [DNV]; e ela é relacionada à pessoa que pariu”, explicou Beija. Ele enfrentou complicações para registrar seu filho, pois o sistema não reconhecia sua condição como pai, uma vez que a mãe era Ella.
Outro relato, o de Lui Fontenele, artista e produtor audiovisual, também ilustra as violências disfarçadas de burocracia. Após o parto de sua filha, Lui, que estava em uma relação transcentrada, teve dificuldades para registrar a criança. Ele não possuía todos os documentos retificados na época e enfrentou uma batalha judicial para garantir o registro da filha. “A gente precisou entrar com uma ação judicial para conseguir que o cartório fizesse a certidão de nascimento, porque o hospital se recusou a entregar uma nova declaração de nascido vivo da minha filha”, contou.
O problema vivido por Lui e Beija contrasta com as recomendações do Ministério da Saúde, que, em 2022, atualizou as instruções de preenchimento da DNV, substituindo os termos “pai” e “mãe” por “responsável legal” para incluir casais trans e outros grupos não contemplados anteriormente.
Após um ano de batalha judicial, Lui finalmente conseguiu registrar sua filha. Ele ressaltou que, durante esse período, teve a sorte de encontrar profissionais que entenderam sua situação e não negaram atendimento à criança. “Por boa vontade do posto de saúde, a nossa filha não perdeu nenhuma vacina, mas poderia ter acontecido se eles se recusassem a dar a caderneta de vacinação”, lamentou.
A falta de compreensão e empatia, no entanto, é uma realidade frequente. O artigo da Physis aponta que o despreparo dos profissionais de saúde em relação às questões de gênero e a falta de respeito às identidades da população LGBTQIA+ dificultam o acesso e tornam as experiências de homens trans nos serviços de saúde negativas. A obstetriz Juliana Mesquita, que acompanha a gestação de homens trans, afirmou que muitos profissionais ainda têm dificuldades em entender a diversidade de gênero, o que pode impactar o cuidado durante a gestação.
A Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza declarou que está desenvolvendo ações para garantir a inclusão e o respeito à diversidade de gênero nos serviços de saúde, enquanto a Secretaria da Saúde do Ceará afirmou que o atendimento nas unidades da Rede Sesa é universal e gratuito, sem distinções.
A situação atual evidencia a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e informada no atendimento de saúde, especialmente para homens trans que desejam gestar e formar famílias.
Crédito da foto: Ismael Soares/SVM. Fonte: g1.

















