A morte do motorista de caminhão-reboque Anderson Cândido de Melo, de 48 anos, alvejado durante conflito de trânsito na terça-feira, provocou revolta e levou amigos e parentes às ruas de Belo Horizonte ontem para pedir justiça, depois de o delegado Rafael Horácio se apresentar à Polícia Civil, assumir a autoria dos disparos, alegar legítima defesa e ser liberado. Um inquérito foi aberto para investigar o caso, alvo também de apuração por meio de procedimento displinar, pelo fato de o autor ser policial civil. Para o especialista em segurança pública Luiz Flávio Sapori, briga de trânsito é motivo fútil e banal para homicídio, sendo mais grave ainda por envolver um policial civil.
O delegado atua no Departamento Estadual de Combate ao Narcotráfico da Polícia Civil (Denarc), e está há pelo menos 16 anos na corporação. Situações como as que envolveram a morte trágica, entretanto, não são incomuns. Só no ano passado, Minas registrou 427 infrações contra pessoas vinculadas ao trânsito, segundo dados do Observatório de Segurança Pública, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).
A briga entre Anderson e Rafael Horácio, registrada na Avenida do Contorno, perto do cruzamento com a Rua Mato Grosso, na saída do Viaduto Oeste, teria começado após o carro em que o policial estava ser fechado pelo veículo da vítima. Durante um bate-boca, o delegado saiu do automóvel, enquanto o outro motorista teria acelerado contra ele. O delegado sacou a arma e atirou em direção ao caminhão, atingindo Anderson no pescoço. A vítima chegou a ser socorrida e encaminhada ao Hospital João XXIII, mas não resistiu aos ferimentos e morreu.
Ontem, dezenas de motoristas de caminhões de reboque fizeram um protesto pelas ruas da capital para pedir justiça pela morte de Anderson. A concentração dos veículos começou no Bairro Padre Eustáquio, Região Noroeste de BH. De lá, a comitiva passou pela marginal do Anel Rodoviário e fez um buzinaço em frente à Casa de Custódia da Polícia Civil, no Bairro Horto, na Região Leste.
A última parada da manifestação foi na Avenida do Contorno, nas proximidades do Viaduto Oeste, onde aconteceu o crime. Outro buzinaço foi feito no local. Além disso, os veículos foram estacionados em duas pistas da avenida. Muitos dos motoristas eram amigos de Anderson. Familiares da vítima também estavam presentes, entre eles uma filha de Anderson.
A cunhada do motorista, Neusa Diniz, estava entre os manifestantes. “Ele tem um neto de 5 anos que toda hora fala: a que horas o vovô vai chegar?”, contou, emocionada. Segundo ela, o motorista de reboque era um homem evangélico, trabalhador e tranquilo. “Ele cuidava de toda a família. São duas filhas adolescentes, dois enteados e o neto.” Além disso, Anderson era responsável pelos cuidados com a mãe, uma idosa de 85, quesofre do Mal de Alzheimer.
Familiares estão em choque com a morte, segundo Neusa. “Ele foi morto por muita crueldade, não precisava disso”, protestou. “Podia ter abordado ele. Por que (o delegado) não deu um tiro no pneu pra ele parar (o veículo)?”, questionou. Durante o protesto, foi feita uma oração e registrado um pedido de justiça. “Viemos cobrar que a justiça seja feita da maneira correta, mas voltar ele não vai jamais”, finalizou Neusa.
Um dos temores dos familiares e amigos do motorista é que o crime que tirou a vida Anderson fique impune. Como o autor dos disparos que acertaram Anderson é um delegado, pessoas próximas à vítima receiam ser ameaçadas. “Temos medo de represálias. Ele está solto, o cara está na rua. O certo era estar preso. Covarde. Um policial que deveria resguardar nossas vidas, tira uma vida”, protestou um motorista de reboque, amigo de Anderson há seis anos, que pediu para não ser identificado. “Ele era uma pessoa muito querida, trabalhadora, honesta, arrimo de família”, disse.
CONFISSÃO O crime está sendo investigado em inquérito policial. Em nota enviada à reportagem na tarde de ontem, a Polícia Civil informou que mesmo após confessar ser o autor dos disparos que matou o motorista, o delegado foi liberado depois de “análise técnica-jurídica” e oitiva de testemunhas. Segundo o comunicado, o delegado teria se apresentado espontaneamente às autoridades, tendo a arma apreendida e alegando legítima defesa após narrar sua versão dos fatos. A liberação, feita pela “autoridade policial responsável pelo inquérito”, tem como fundamento a “apresentação espontânea” e a falta de “elementos jurídicos para a prisão do autor do fato”, informa o texto.
De acordo com a Polícia Civil, no curso do inquérito, todas as diligências investigativas possíveis serão realizadas, como depoimentos de outras testemunhas, análise de laudos periciais e arrecadação de imagens de câmeras de vigilância. “Tudo para que se chegue ao esclarecimento completo de todas as circunstâncias do crime, de maneira a proporcionar ao Ministério Público e ao Poder Judiciário os elementos necessários ao processo criminal. Além disso, foi instaurado procedimento disciplinar para apuração rigorosa acerca da responsabilidade administrativa existente”, diz a nota.
Como havia sido informado na terça-feira, a Polícia Civil garante que a Corregedoria adotou medidas imediatas para apuração dos fatos e assegura que o inquérito policial será concluído no prazo legal de 30 dias, “com impessoalidade, imparcialidade e transparência, repudiando atitudes violentas, insensatas e incivilizadas de quaisquer pessoas, especialmente de seus servidores”.
OUTROS INCIDENTES Segundo fontes da Polícia Civil, o delegado Rafael Horácio já se envolveu em outros incidentes no trânsito, como dirigir alcoolizado e trafegar na pista do Move, em BH. Quando atuava na Polícia Civil de Alfenas, foi investigado em 2010 por um disparo de arma de fogo em uma rua da cidade, durante a madrugada. Após o episódio, ele foi transferido para Betim. O delegado também seria investigado em um inquérito envolvendo tráfico e apreensão de drogas, em Betim, além de responder a outros processos em curso na Corregedoria e na Ouvidoria da Polícia Civil. A reportagem entrou em contato com a PC para saber sobre essas ocorrências, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Descontrole que vira tragédia
Em uma sociedade com “pavio curto”, as brigas de trânsito se repetem, com agressões verbais ou físicas. Mas no caso envolvendo o motorista Anderson Cândido de Melo e o delegado Rafael Horácio há agravantes, diz especialista. “Briga de trânsito não é um fenômeno atípico. O problema é como o conflito é resolvido, por meio de força física e arma de fogo. Mas por ser um profissional de segurança pública, o delegado deveria se comportar de uma maneira completamente diferente”, disse Sapori, que avalia que houve “destempero” e incapacidade de lidar com situações cotidianas por parte do policial. “Ele é preparado, ou deveria ser, para saber lidar com conflitos sem o uso da força física, principalmente em uma situação em que não está em exercício profissional. Ali ele não era delegado, e sim um cidadão comum”, disse.
Já o advogado criminalista e pesquisador em segurança pública Jorge Tassi avalia uma realidade de sofrimento mental e alto grau de estresse como alguns dos motivos possíveis em cenários de crimes parecidos. “É muito complicado e o fato de ser policial não exonera uma pessoa a passar por isso. Não seria justificativa para uma legítima defesa, mas hoje temos uma realidade clara nas forças policiais de todo o Brasil”, afirma.
O especialista também pondera que é preciso ter autocontrole para que essas situações sejam evitadas. “Estamos falando de um crime produto de um processo emocional, a pessoa explodiu. Pode até ter momentos assim, de explosão, mas é preciso evitar que a raiva se transforme em um confronto com o outro. Isso significa um controle dos impulsos. É preciso contar até 50 antes de agir de forma agressiva. E ainda é importante avaliar que o porte de arma não deve ser um instrumento de poder”, concluiu.
A personalidade, o uso de substâncias ilícitas e o estresse também são motivos relacionados por especialistas como deflagradores de ocorrências como brigas de trânsito. Segundo avalia a psiquiatra forense Silvia Sales Souza, até mesmo a idade e gênero podem interferir. “O homem tem uma prevalência maior em ocorrências de trânsito, principalmente os mais jovens. E geralmente as pessoas que se envolvem nesse tipo de situação já têm um longo histórico de infrações a leis de trânsito e desrespeito às normas”, considerou. Há, ainda, transtornos mentais que podem ocasionar, mas não necessariamente, agressividade no trânsito, que terminam mais constantes por falta de punições mais rígidas, avalia. “
Para a psicóloga do trânsito Angélica Aparecida Reis vários fatores podem desencadear um comportamento agressivo nas ruas, inclusive a própria dinâmica do tráfego. “Mas o maior deles é o desgaste físico e mental que a população em geral tem vivido, não só no trabalho”, avalia. Segundo ela, o problema é que o estresse pode modificar de maneira inesperada o comportamento humano e uma pessoa que normalmente não é agressiva acaba tendo um comportamento inesperado.
“As pessoas estão cada vez mais despreparadas para lidar com as frustrações e, quando se deparam com situações atípicas, são acometidas pelo descontrole emocional, afirma a psicóloga. Ela diz que o ato de matar uma pessoa no trânsito seria a manifestação desse descontrole. “Principalmente, por uma falta de racionalização , somada a uma fragilidade emocional. É o ato não pensado. Não se pensa em consequência nenhuma.”
Outro fator, segundo a psicóloga, é que as pessoas se sentem mais corajosas ao volante. “Elas se sentem mais seguras. Dirigir é uma experiência que proporciona a sensação de poder.” Porém, destaca, episódios como o que culminou na morte de Anderson, mostram que a saúde mental das pessoas pede socorro. “Não podemos entender como normal as pessoas não conseguirem manter o controle sobre os seus atos e suas emoções e, às vezes, tomarem atitudes que são contrárias a sua própria ética ou moral. Mas precisamos olhar para este pedido de socorro antes de banalizar a vida do outro, .de matar porque alguém buzinou, porque se levou uma fechada.”
OUTROS CASOS Dois dias antes do homicídio do motorista de caminhão-reboque, um outro caso, também envolvendo um policial, chamou a atenção. Dessa vez, a vítima foi uma mulher, empresária, de 35 anos. Na segunda-feira (25/7), ela procurou a Polícia Militar para denunciar uma ameaça e agressão vinda de um policial que estava fora de serviço, no Bairro Ouro Preto, na Região da Pampulha, no domingo (24/7).
Segundo o boletim de ocorrência, a vítima e o marido relataram às autoridades que voltavam de um restaurante, quando um veículo bateu na traseira do carro em que estavam. O homem, segundo o casal, não assumiu o erro, debochando deles e agredindo a mulher.
Ao Estado de Minas, a empresária, que pediu para não ter o nome publicado, contou que a colisão ocorreu logo após o sinal fechar na Rua Manoel Elias de Aguiar. “Meu esposo desceu para ver o estrago e conversar com o motorista, que começou a ‘crescer’ para cima dele, debochando da situação. Vendo a situação de dentro do carro, resolvi sair e orientei meu marido a fotografar a placa. O cara disse para eu não me envolver, caso contrário iria sobrar pra mim. Mesmo assim, meu marido tirou a foto”, contou, afirmando ter levado “vários socos” do suspeito. Um deles, segundo a mulher, atingiu sua boca, provocando uma lesão.
No caminho de volta, os dois viram uma viatura e pediram ajuda, mas foram orientados a “ficar calmos”, já que não havia flagrante. Segundo a empresária, um amigo que integra a corporação confirmar a identidade do agressor, que é policial.
Surto de ataques entre motoristas
Segundo dados do Observatório de Segurança Pública, da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), em 2021 foram registradas 427 infrações contra pessoas vinculadas ao trânsito, em Minas Gerais, que vão de ataques verbais(classificados como calúnia, difamação ou injúria) a agressões físicas. Em 2022, de janeiro a junho foram 169 ocorrências, sendo que no mesmo período do ano passado foram 215. Em BH, foram 57 infrações em 2021. Entre janeiro e junho deste ano, 31 casos, sendo que no mesmo período do ano passado os registros somam 33.
Entre as ocorrências, 77 foram registradas como lesão corporal vinculada ao trânsito em 2021. De janeiro a junho de 2022, 41 foram classificadas nesse tido de infração, contra 37 em igual período do ano passado. Já em BH foram oito ocorrências do tipo em 2021, seis de janeiro a junho de 2022 e quatro no mesmo período do ano passado.
Já os registros de vias de fato/agressões consumadas vinculadas ao trânsito somaram 45 casos em Minas em 2021. De janeiro a junho de 2022, foram 20 casos, e, no mesmo período do ano passado, 24. Já em BH foram 10 ocorrências em 2021, cinco de janeiro a junho de 2022 e a mesma quantidade no mesmo período do ano passado.
(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press )