Quando a música “Infiel” estourou, em 2016, a jovem Marília Mendonça (1995-2021) talvez não tivesse noção de que naquele momento dava um grande passo na vida pessoal e profissional e viria a se tornar um dos principais nomes da música brasileira. Compositora, instrumentista e intérprete, a goiana conquistou uma legião de fãs e admiradores, que se tornou a segunda voz da artista e canta, até hoje, em coro, os versos de amor não correspondido, paixões traídas, amizade e valorização entre as mulheres. A Rainha da Sofrência, como ficou conhecida, construiu uma carreira meteórica, encerrada de maneira abrupta em 5 de novembro de 2021, após um acidente aéreo em Minas Gerais. A voz de sertaneja se calou, contudo, como toda rainha, segue ecoando por todos os cantos do país através do seu legado.
Marília continua sendo uma das artistas mais ouvidas no Brasil. Somente no Spotify, a cantora tem 10.421.102 de ouvintes mensais. A Rainha da Sofrência foi a artista brasileira mais ouvida nos seis primeiros meses na plataforma e ficou 51 semanas seguidas no Top Artistas do Brasil do Spotify. O EP póstumo “Decretos Reais Vol. 1”, lançado em julho deste ano, atingiu 500 mil streams na primeira hora de lançamento. Entre os álbuns de Marília Mendonça mais escutados, está “Todos os Cantos”, de 2019, projeto gravado em várias cidades do Brasil, inclusive em Belo Horizonte.
“Marília continua entre as mais ouvidas do país, e imagino que que vá seguir ainda durante um tempo assim. Além de ter sido muito traumático (o acidente que provocou a morte da artista), a Marília, nesse curto tempo de carreira, de 2016 até o ano passado, lançou muita coisa, produziu muita coisa. E não tem ninguém que faça nada parecido ou que pegue o público dela. Então eu acho que o consumo vai continuar forte por um bom tempo”, avalia o jornalista especializado em música sertaneja André Piunti.
Segundo ele, a cantora também deixou “muita coisa guardada” que ainda pode ser divulgada, o que alimenta o consumo e o interesse em torno do trabalho da Rainha da Sofrência. A cantora tem 324 músicas registradas em seu nome, segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). E, além do EP “Decretos Reais”, outros lançamentos póstumos de Marília Mendonça estão no radar. Em entrevista à revista norte-americana “Billboard” em julho, Marcelo Soares, CEO da Som Livre, revelou que a gravadora possui masters de 110 músicas gravadas pela cantora, incluindo composições próprias e de outros compositores. A reportagem tentou contato com a Som Livre, que não respondeu à demanda.
Ícone do feminejo, cantora rompeu barreiras
A morte precoce de Marília Mendonça, aos 26 anos, no auge do sucesso, parou o Brasil na tarde daquela sexta-feira de novembro. A notícia mobilizou pessoas nas redes sociais e nas ruas, revelando que a cantora, dona de hits como “Amante Não Tem Lar” e “Supera”, era muito mais do que uma simples compositora e intérprete. “A Marília é uma das figuras mais importantes da história da música sertaneja, e eu digo da história quase centenária da música sertaneja, porque ela obviamente fez parte de um movimento”, afirma André Piunti, referindo-se ao feminejo, que trouxe o ponto de vista feminino para as canções. “Ela não foi a única mulher, mas sem dúvida foi quem abriu a porta para todo mundo vir junto. Ela teve a Maiara e Maraísa muito próximas, fizeram muita coisa juntas; tem a Simone e Simaria que vieram de um lado e a Naiara Azevedo do outro”, comenta o jornalista, sobre a ascensão feminina na música sertaneja. “Mas tudo começa com a Marília, a menina que quebra o padrão da mulher do sertanejo”, frisa Piunti.
Crítico musical, Mauro Ferreira também ressalta a importância desse legado da artista como principal representante do “feminejo”. “A Marília foi uma compositora que deu voz ativa às mulheres no universo sertanejo. Antes dela vieram duas compositoras que realmente conseguiram se fazer ouvir. A Roberta Miranda, que apareceu no final dos anos 1980, que lutou pelo direito de poder gravar e estourou, e, no finalzinho dos anos 2000, Paula Fernandes”, cita. “Sabe qual é a diferença entre as três? Roberta e Paula fazem canções autorais, mas não havia a marcação explícita de gênero. A gente percebe uma sensibilidade feminina nas letras, mas ainda assim era uma letra que não marcava que era uma mulher. Eu acho que a Marília foi explicitamente feminina na questão de marcar uma posição de gênero mesmo. As letras eram escritas do ponto de vista da mulher”, comenta Ferreira.
Para o crítico, essa característica é um dos fatores que explicam o sucesso da cantora. “Esse sucesso tem a ver com essa forma mais direta e pessoal da Marília por abordar temas do cotidiano mesmo. As letras eram muito diretas, muito simples, Marília era mais objetiva”, pontua ele. André Piunti destaca a questão da representatividade. “As meninas sempre consumiram música sertaneja, sempre foram fãs, só que faltava uma menina em cima do palco falando sobre a vida de quem estava lá embaixo. Sempre era o cara falando alguma coisa, da visão do cara, e é muito louco você pensar que até pouco tempo atrás não tinha ninguém lá em cima que falava a mesma língua”, afirma o jornalista especializado em música sertaneja.
“A carreira da Marília Mendonça acabou em um momento em que ela ainda tinha muito a conquistar. Eu acho talvez não tanto no Brasil, porque ela já estava no topo, mas talvez em termos do exterior mesmo”, avalia Mauro Ferreira, que diz que o legado da Rainha da Sofrência seguirá vivo. Questionado se existe algum artista que possa herdar esse legado, ele afirma: “Como é tudo muito recente, ainda não dá para citar alguém. Maiara e Maraísa já estavam com a Marília, então elas são contemporâneas. Para mim, ainda não apareceu ninguém”. André Piunti concorda com o crítico musical e ressalta: “Eu diria que a herdeira desse legado é essa geração de meninas cantoras que está vindo e que podem ser cantoras porque existiu a Marília Mendonça”.
Fonte: O tempo.