À frente da Coordenadoria de Políticas para Mulheres na Subsecretaria de Direitos Humanos (SUBDH), Maíra Fernandes relaciona o recente aumento dos casos de violência contra elas à pandemia de COVID-19. “As mulheres começaram a passar a maior parte do tempo em casa, junto com as suas famílias, o que inclui os seus agressores, muitas vezes”, lembra. Mas alerta: o fenômeno não se reduz à conjuntura e exibe também ranços culturais que precisam ser enfrentados num amplo esforço de municípios, estados e União para quebrar esse ciclo. Em Minas, foco se volta também para o interior.
Ela ressalta ainda a complexidade do fenômeno exposta nesse período. “Podemos pensar como o fenômeno da violência contra a mulher é complexo, porque nesse momento de crise, que também afeta a economia, muitas delas, assim como os homens, também têm dificuldades de manter os empregos. Ou ficam temerosos de perderem o emprego e isso impacta na saúde emocional e mental dessas pessoas”, diz a coordenadora.
A expectativa é que haja uma desaceleração nas ocorrências, passados os efeitos da pandemia, aposta. “Infelizmente, na cultura machista e patriarcal, os homens, muitas vezes, acabam expressando suas frustrações de forma violenta para com as mulheres. Temos como consequência o aumento da violência. Para agravar elas ficaram muito tempo presas em casa, então essa violência começa a ficar cada vez mais rotineira”, completa.
Maíra lembra que a violência doméstica está relacionada a um ciclo que começa com um relacionamento abusivo e vai escalando. “Por isso, os feminicídios vão aumentando. A gente já vem fazendo um trabalho integrado, com as polícias, com a segurança pública para diminuir essas taxas”, afirma.
“É somente unindo todas as forças dos municípios e estados do país que realmente vamos mudar essa cultura patriarcal, para erradicar essas formas de violência. Isso engloba a educação das nossas meninas e meninos, a parte da assistência social para essas mulheres, o acesso à saúde mental dessas famílias para recuperarem o seu equilíbrio, além de um trabalho com os homens de retirar essas perspectivas machistas de verem as mulheres como objetos, como posses. Que (os fazem acreditar que) eles podem usar da força e da violência como bem entender para lidar com as suas frustrações”, defende.
Campanhas de combate à violência
Segundo Maíra, em março, as campanhas serão intensificadas, em ações realizadas em conjunto com outras áreas da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedese), que engloba a SUBDH. “Este ano, eu vejo essa mudança positiva no investimento do governo, porque conseguimos ampliar essa articulação com outras secretarias, ficando uma campanha mais robusta de governo, com mais materiais e mais ações para o interior. Há um grande interesse desse governo interiorizar as políticas e não ficar só na região metropolitana.”
Ela ressalta que o governo estadual oferece um serviço de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar que é o Centro Estadual Risoleta Neves (Cerna).
“Ele atende mulheres tanto no formato presencial, moradoras da capital e região metropolitana, mas também no formato virtual para todo o estado. Quando uma mulher liga para o centro, é atendida por psicólogas, assistentes sociais, têm orientação jurídica. Quando vem do interior, há uma articulação com a rede do município para que ela acesse o serviço da sua localidade e consiga sair da situação de violência”, explica.
Como denunciar violência contra as mulheres
A delegada Renata Ribeiro Fagundes, da Divisão Especializada de Atendimento à Mulher, acredita que cada vez mais vítimas estão se sentindo seguras para denunciar os agressores. “Quanto mais divulgamos campanhas, principalmente preventivas, vemos aumento nos atendimentos da delegacia.”
Outro ponto destacado por ela é a importância das medidas protetivas. “Não podemos descredibilizá-las e é o que tende a acontecer quando vemos casos de feminicídio. Mas, na verdade, as medidas protetivas salvam vidas. Temos centenas de mulheres que vêm à delegacia todos os dias e que têm medidas protetivas. Graças a elas, as mulheres conseguem romper com o ciclo de violência.”
Renata destaca que mais de 90% das mulheres vítimas de feminicídio não tinham medidas protetivas ou sequer fizeram registro de ocorrência da violência sofrida. Para a delegada, as campanhas também fazem com que a sociedade tenha consciência de que é dever de todos enfrentar esse tipo de violência. Ela alerta ainda que as pessoas devem ficar atentas aos sinais.
“É importante ressaltar que tudo começa em um relacionamento abusivo e quem vive um relacionamento assim não consegue perceber que está passando por essa situação logo no começo. Mas quem está de fora vê. Um familiar, um amigo, percebe que a mulher está deixando a convivência social. Esse é o momento de intervir e fazer com que ela rompa com essa situação antes de se tornar uma coisa pior. A violência psicológica vai evoluindo para uma violência física e até para um feminicídio.”
Ela lembra que as pessoas tendem a chamar esses crimes de passionais, mas são crimes de ódio. “A violência é cometida exatamente pelo gênero, com agressões no rosto e formas de ataques mais cruéis demonstram o ódio à condição do gênero feminino, que é o que caracteriza o crime de gênero, como o feminicídio.”
Onde procurar ajuda
A mulher em situação de violência de qualquer cidade de Minas Gerais pode procurar uma delegacia da Polícia Civil para fazer a denúncia. “É possível fazer o registro da ocorrência e pedir a medida protetiva em algumas comarcas, em que temos delegacias especializadas de atendimento à mulher. Se não tiver delegacia especializada na sua cidade, procure a delegacia de Polícia Civil”, explica a delegada.
É possível também fazer um registro por meio da delegacia virtual. “No aplicativo ‘MG Mulher’ a vítima tem acesso à Delegacia Virtual e a outros vídeos explicativos, com endereços de delegacia de polícia também”, detalha. E caso uma pessoa saiba que a mulher está sendo vítima de violência doméstica e queira fazer a denúncia, de forma anônima, pode ligar para o Disque 181. “O importante é não se calar e denunciar”, lembra a delegada.
Ao fazer a ocorrência, a mulher pode pedir o requerimento da medida protetiva, segundo Renata. “Em Belo Horizonte, temos a Casa da Mulher Mineira. Lá ela consegue fazer ocorrência, pedir a medida protetiva e também ser encaminhada para outros órgãos da rede de proteção, para poder receber um atendimento psicossocial, por exemplo. Ela também pode ser encaminhada para o Núcleo Especializado da Defensoria Pública que vai prestar as orientações jurídicas, para poder dar continuidade ou iniciar um divórcio, pedir uma pensão para os filhos.”
Acolhimento às vítimas na capital
Em Belo Horizonte, há atendimento especializado para mulheres acima de 18 anos vítimas de violência doméstica e familiar – psicológica, física, sexual, patrimonial ou moral – com base no gênero, de acordo com a Lei Maria da Penha. O Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) Benvinda, localizado no Bairro Santa Tereza, serve como porta de entrada para os demais serviços públicos do município e realiza encaminhamento para todos os atendimentos especializados em acolher a mulher.
Patrícia Sampaio, referência de enfrentamento à violência contra as mulheres na Diretoria de Políticas para Mulheres da PBH, fala do histórico do Ceam e explica qual a importância de locais como esse. “O Benvinda foi criado em 1996 com o objetivo de atender mulheres em situação de violência, oferecendo apoio psicológico, orientação, atendimento e acompanhamento psicossocial às mulheres no sentido de superarem a violência. A mulher que sofre violência pode procurar o Ceam Benvinda, onde será acolhida e receberá orientações conforme a necessidade dela”, afirma.
O Ceam é, então, responsável pelo redirecionamento das mulheres que procuram ajuda após passarem por situações de violência. “Se precisam de atendimento de saúde, a gente faz articulação com a Saúde; se ela precisa de um atendimento jurídico especializado, a gente as encaminha para esse suporte; se for observada a necessidade de abrigamento por risco alto de feminicídio, nós fazemos a articulação com o Consórcio Mulheres das Gerais, e existe a possibilidade de ela ir para a Casa-Abrigo Sempre Viva”, acrescenta.
As mulheres que precisarem dos serviços do Ceam Benvinda podem acessá-los de forma espontânea ou por meio de encaminhamento de delegacias ou outros serviços da rede de proteção à mulher. “O atendimento é de porta aberta. As mulheres podem chegar e receber o atendimento na hora, mas também trabalhamos com agendamento para facilitar a vida daquelas que precisam chegar até aqui”, completa Patrícia Sampaio.
O equipamento atende mulheres do município de Belo Horizonte e, quando surgem demandas de outras cidades, são encaminhadas para o Centro Risoleta Neves de Atendimento à Mulher (Cerna). Outras opções para o atendimento de mulheres em situação de violência são os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), que têm uma unidade em cada regional da capital mineira. De acordo com Patrícia, a PBH está preparando e lançará, ainda na próxima semana, uma programação especial para março voltada à proteção das mulheres.
Educação reforça traços tóxicos, diz especialista
O comportamento agressivo dos homens em relação à subversão das mulheres dentro das relações parte de sua socialização enquanto criança e jovem, de acordo com a jornalista e pesquisadora Elizabeth Fleury. Ela faz parte do movimento Quem Ama Não Mata e analisa homens que foram autores de violência contra a mulher e são obrigados a frequentar grupos de reflexão pela Lei Maria da Penha. Lançado na década de 1980, o movimento segue relevante, em momento de escalada da violência contra a mulher.
Para ela, a construção da masculinidade se dá ao longo da infância e se consolida na vida adulta, geralmente, como um traço tóxico e abusivo que coloca os homens em posição de dominadores, e as mulheres, em posição de dominadas. “O homem foi ensinado que, para ser um macho perfeito e respeitado, ele tem que estar no controle da situação”, explica ela. A partir do momento em que os direitos femininos começam a se ampliar – resultado de muita luta –, há, também, um aumento nos índices de violência contra a mulher.
“As mulheres, como não estão no mesmo patamar de poder que os homens por não serem educadas da mesma forma, têm uma perspectiva de um lugar subalterno e, portanto, não podem compreender suas relações e disputar com o homem de igual para igual. Quando as mulheres entram nesse movimento de se libertar da subalternidade é que aparece a violência, pois eles não querem deixar que elas estejam no mesmo patamar que o seu”, completou.
Apesar disso, Fleury relembra também que, antes mesmo do crescimento do feminismo, já havia muitos casos de violência contra a mulher, mas que eles quase nunca eram notificados. “Antigamente, quando as mulheres denunciavam uma violência, elas eram tratadas como se fossem as vilãs. Sempre se matou, sempre se supliciou, sempre se vitimou as mulheres, mas não há registros suficientes, porque matar mulheres, maltratar mulheres, fazer desaforo e agredir fisicamente eram consideradas coisas normais”, conta.
Em relação aos métodos de crueldade que vêm sendo observados em casos recentes de feminicídio e de violência contra a mulher, a pesquisadora discorda que haja um aumento. “Não acredito que esteja piorando. Acredito que, hoje, a gente vê mais porque existe maior visibilidade sobre este problema; hoje, se observa muito mais detalhadamente cada situação e, então começamos a nos perguntar: hoje se mata de uma maneira mais cruel? Mas não são maneiras mais cruéis de se matar. Matar já é cruel”, explica Fleury.
Quem ama não mata
Para a fundadora do movimento Quem Ama Não Mata, Mirian Chrystus, a principal causa do feminicídio é a mulher manifestar o desejo de separação e os homens não aceitarem o fim desse relacionamento. O movimento surgiu em 1975, quando ela e um grupo de amigas fizeram um debate sobre a situação da mulher no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Minas Gerais. “(Na época), não existia a questão da mulher. Nesse debate trouxemos várias pessoas. Foram três dias de debate sobre o tema”, conta.
Em 1980, lembra Mirian Chrystus, houve duas mortes de mulheres por assassinato em um espaço de 15 dias. Uma foi morta pelo marido voltando da academia de ginástica porque ele não concordava com o comportamento dela. A outra foi vítima também do marido enquanto dormia. Ele suspeitava de uma traição.
“Essas duas mortes causaram uma comoção em Belo Horizonte e algumas jornalistas resolveram fazer um ato público. Naquela época, fim da ditadura, era uma coisa original. Essa ideia se espalhou muito por Belo Horizonte. Houve discussões entre professores e alunos na UFMG e na PUC. Foi uma ideia que se alastrou.”
Em 18 de agosto de 1980, ocorreu um ato no adro da Igreja São José, no Centro de Belo Horizonte, que reuniu cerca de 400 pessoas, na maioria mulheres, levando flores e velas. “Feministas de São Paulo e Rio de Janeiro vieram participar. “As pessoas dizem: ‘matou por amor’. Amor não é isso. A potência desse ato é impressionante. Até hoje ele reverbera”, lembra Mirian.
Quatro dias após o ato, foi criado o Centro de Defesa dos Direitos da Mulher. As duas primeiras pesquisas sobre violência contra mulher, em Belo Horizonte, foram realizadas pelo centro. “As principais conclusões foram de que as delegacias não acolhiam as mulheres, os delegados as tratavam de uma maneira muito indigna e os agentes de segurança deveriam ser melhor qualificados.”
Em 2018, Mirian e outras fundadoras decidem retomar o movimento após a morte de Tatiane Spitzner, que foi agredida e jogada pela varanda do apartamento em que morava com o marido, Luis Felipe Manvailer, em Guarapuava, no Paraná. “Nascemos sob o signo da violência e nosso grupo gira em torno dela, sob todas as formas.”