Há um ano, a pandemia do coronavírus interrompeu abruptamente as rotinas escolares e provocou uma verdadeira mudança na vida das famílias brasileiras. Sem as aulas presenciais, o ensino remoto se mostrou como alternativa para não interromper as atividades, mas também acirrou os debates sobre a desigualdade no acesso às tecnologias.
Na outra ponta, a modalidade de ensino cobrou a participação mais ativa dos pais e responsáveis na vida do estudante dentro de casa, um cenário próximo ao do chamado “homeschooling”, ou a educação domiciliar – quando a frequência à escola é substituída por aulas dadas pelos próprios familiares ou professores particulares.
Realidade permitida em pelo menos 60 países – como Estados Unidos, França e Portugal –, a regulamentação do tema no Brasil ganhou força na gestão do presidente Jair Bolsonaro, que chegou a definir essa como uma das metas dos cem primeiros dias de governo. Para isso, o Executivo encaminhou em 2019 o Projeto de Lei (PL) 2.401, assinado pelos ministérios da Mulher, Família e Direitos Humanos e da Educação, que cria normas e regras sobre a forma de ensino em âmbito nacional.
Porém, a proposta praticamente não andou na Casa nos últimos anos. E ao mesmo tempo em que pressiona pelo retorno das aulas presenciais em meio à pandemia, o governo federal quer que a regulamentação volte a ser discutida, aproveitando o momento de isolamento social que reforça os conceitos da modalidade – a questão também foi definida como uma das pautas prioritárias do Planalto para o Congresso. O principal objetivo é fazer com que as famílias tenham o ensino doméstico como opção para educar crianças e adolescentes.
Conforme a proposta, os responsáveis que optarem pelo homeschooling devem formalizar a escolha em uma plataforma virtual do Ministério da Educação (MEC). O projeto também prevê uma avaliação anual dos estudantes, em que será considerada a idade a partir do segundo ano do ensino fundamental nas escolas e cobrados os conteúdos da Base Comum Curricular, que são definidos pelo MEC.
“A educação dirigida pelos próprios pais ou responsáveis é uma realidade já consolidada em muitos países, presente também no Brasil, embora, até o presente momento, de maneira informal”, justifica o Planalto no projeto.
No Distrito Federal, uma legislação sobre o tema chegou a ser aprovada no fim do ano passado – a regra passa a valer a partir deste mês. Para aderir, os familiares de Brasília e cidades-satélite devem fazer um cadastro na Secretaria de Educação e ainda comprovar capacidade técnica para conduzir os estudos da criança ou do adolescente. A lei exige uma avaliação de um assistente social, um pedagogo e um psicólogo, além do acompanhamento pelo conselheiro tutelar.
“É muito mais do que a escola”
Dados da Associação Nacional de Educação Familiar apontam que quase 15 mil alunos em todo o país, com idades entre 4 e 17 anos, já estudam em casa. São realidades como a dos filhos da Jaque Schettert, que também é mentora em educação domiciliar e fundadora do movimento Homeschooling no Brasil.
“Esse ensino valoriza o aprendizado natural, baseado no interesse de cada criança. Não é uma educação padronizada, cada pessoa tem um jeito diferente de aprender, nas áreas que mais gostam. A escola só vê as pessoas como números”, disse.
Segundo Jaque, nessa modalidade os pais podem fazer o planejamento educacional que segue as áreas de interesse do filho e, caso necessário, ainda podem contratar um tutor. Ainda é possível utilizar plataformas virtuais específicas, videoaulas e materiais didáticos.
“Foi criado um estereótipo de que a criança só aprende na escola. Em casa, não vai existir o bullying, testes padronizados. Ela vai aprender no seu ritmo”, completou. Porém, a mentora diz ser contrária às definições da Base Comum Curricular no homeschooling.
“Quem disse que é preciso estudar essas coisas formuladas por pessoas do governo que dizem que é aquilo que tem que se aprender? A educação domiciliar é muito mais do que a escola. Uma criança que fica em casa e estuda o que é de interesse se dá muito melhor nos testes do que aqueles que vão para uma unidade de ensino”, garantiu Jaque.
A coordenadora institucional da Ação Educativa e professora de política educacional da USP, Denise Carreira, apontou que o homeschooling passou a ser defendido por movimentos ultraconservadores do Brasil nos últimos anos.
“É o mesmo fenômeno que faz parte das propostas do movimento Escola Sem Partido, a militarização das escolas e a defesa do ensino religioso confessional na rede pública. Ela vem sendo defendida como forma de proteger crianças e adolescentes a acessarem conhecimentos que entrem em confronto com doutrinas religiosas ou políticas das famílias”, explicou a professora.
Para a especialista, a forma de ensino ainda restringe o acesso da criança e do adolescente à diversidade existente nas escolas. “Para esses grupos, isso é uma ameaça e deve ser segregada. Da forma como está sendo defendido não é algo bom para o projeto de país comprometido com a democracia e o enfrentamento da desigualdade”, finalizou.
Críticas ao processo e isolamento dos alunos
A regulamentação do ensino doméstico no Brasil é vista como prejudicial para muitos especialistas em educação. Para a presidente do Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (SINEP-MG), Zuleica Reis, a medida é prejudicial às crianças brasileiras, principalmente as mais pobres. “É extremamente importante para o desenvolvimento de qualquer cidadão a convivência na escola física, o aprendizado, o compartilhamento de experiências e a relação com diferentes colegas e professores. Retirar esse direito é, no mínimo, um atentado contra a cidadania”, enfatizou.
A dirigente lembrou ainda que a medida pode aumentar o trabalho infantil e colocar em risco o direito das crianças à educação. “Principalmente em regiões periféricas, o ensino domiciliar não será devidamente fiscalizado. Ainda há uma parcela das famílias que não reconhece a importância e o valor da escola na formação de crianças e jovens”, argumentou.
Já o presidente do Conselho Estadual de Educação, Hélvio de Avelar Teixeira, questiona a forma como os estudantes serão avaliados no homeschooling. “Quando você deixa muito solto, a criança não aprende conteúdos que são completamente necessários ao seu desenvolvimento, não só pessoal como social, além do entendimento de mundo no qual está inserida”, enfatizou. O especialista acrescenta ainda que, ao contrário do que alegam as famílias adeptas da modalidade, o ensino domiciliar pode tirar liberdades. “Vai reduzir muito o ambiente no qual a pessoa está inserida”, resumiu.
Falta de informações para comparar
Visto como referência pelo governo para a implantação do ensino domiciliar, os EUA não possuem dados que comparam o desempenho de alunos educados em casa com o de escolas públicas.
Christopher Lubienski e T. Jameson Brewer, autores do artigo “Educação domiciliar nos Estados Unidos: Examinando os fundamentos para educação individualizada”, argumentam que fatores como renda e estabilidade familiar são mais determinantes para a realização escolar do que o método utilizado.