Com a acentuação das aulas online aumenta também a resistência dos alunos em abrir a câmera no ambiente remoto. Timidez, exposição, vergonha, mico e o estar diante de um “espelho” são algumas das razões, entenda
Num momento de agravamento da pandemia em que as escolas se recolhem novamente ao ambiente virtual como possibilidade de manter as portas abertas, a polêmica das câmeras fechadas volta a ser assunto entre grupos de pais, escolas e adolescentes. O que era um estranhamento ano passado, agora é uma constante na vida de adolescentes e é preciso entender o que acontece do lado de lá da tela para dialogar.
Quem lembra da brincadeira de criança “cabo de guerra”, sabe perfeitamente que está diante da mesma circunstância, mas sob outra configuração. Abrir as câmeras durante as aulas remotas virou uma briga entre pais e filhos, principalmente, os adolescentes. Por diversas razões, eles resistem em ligar e só mesmo com muita pressão da escola e dos professores é que alguns cedem.
Os mais tímidos descobriram o paraíso com a possibilidade de não dar as caras a ninguém. Alguns usam até moletom com capuz como recurso pra se esconderem. Leila Izzo conta que o filho de 14 anos não liga nem câmera, nem microfone. E mesmo quando o professor pede, ele usa um recurso de app em que congela a imagem para parecer que o sinal está ruim. “Eu entro no quarto, a câmera está desligada, eu saio ligando. Então ele já sabe, se eu entro ele mesmo vai ligando. Mas está difícil”, conta.
O recurso é um exemplo das inúmeras possibilidades que os adolescentes têm em mãos para não aparecer na tela e as razões são inúmeras. Vergonha, mico, preguiça de se arrumar, privacidade ou “ninguém abre então também não vou abrir” e a tela como espelho da própria imagem são alguns exemplos. As razões são legítimas e devem ser respeitadas, mas não eximem o diálogo e a insistência para que abram durante as aulas remotas.
Para o Prof. Dr. Guilherme Polanczyk, psiquiatra da Infância e Adolescência e professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, o que ele tem observado é que as razões mais frequentes pelas quais eles não ligam a câmera estão relacionadas com a exposição social e com o engajamento na escola. “Pode haver realmente sintomas de ansiedade social, mas o que tenho percebido é que os jovens não acham necessário aparecer”, fala.
“Abrir a câmera permite uma interação mais efetiva entre as pessoas, uma exposição um pouco maior e eles parecem perceber como invasivo ou como se algumas palavras ou gírias no chat bastasse para a comunicação e relação. Isso talvez já seja uma mudança na forma de se relacionar com as pessoas advinda de muito tempo de distanciamento social”, aponta Polanczyk.
A mudança na forma de se relacionar que o Dr. Guilherme levanta como possível sintoma da pandemia é algo que precisa ser olhada com atenção. Antes de achar que adolescentes estão sendo mal educados e desrespeitosos com quem está do outro lado, é preciso se perguntar o que mudou na compreensão deles. O que o mundo tem ensinado a eles sobre relações, exposição da imagem e comunicação. Jovens costumam responder aos ambientes externos mais que os internos.
Diante deste contexto, os educadores se perguntaram: “onde está esse corpo nas aulas remotas?”. “O corpo está ali”, recorda Roberta Edo, orientadora pedagógica da 1ª série do Ensino Médio. “É com ele que nos sustentamos no mundo. O corpo está na imagem (mesmo através das câmeras e recortado – só o rosto-), na voz e no olhar dos colegas e do professor. Com esse pressuposto, penso que esse corpo deve ser convidado e incentivado a se fazer presente, mostrado, revelado – corpo que se mostra no espaço público, ainda que virtual”.
É preciso olhar para este “lugar tão diferente” com empatia. Ainda que seja um espaço escolar, com colegas e professores conhecidos, é uma sala nova. Um lugar novo para se estar presente. E se pensarmos que a tela tem a função secundária de um espelho, manter a câmera aberta também significa manter-se olhando neste espelho por horas a fio. E como é para um adolescente ficar se olhando no espelho?
A câmera fechada deixa de permitir um monitoramento externo do comportamento, possibilitando que faça outras atividades, durma ou simplesmente não esteja ali. “O ensino à distância é muito desafiador para o estudante e como em toda relação, a responsabilidade é dos dois lados: se temos uma aula expositiva, com dezenas de alunos, o professor não está estimulando a interação. Nesse cenário, por que se expor? Esse é o cenário perfeito para assistir a aula deitado na cama, de pijama, assistindo uma série em um outro dispositivo, obviamente com a câmera fechada”, completa.
Não é fácil ser adolescente, o que dirá um adolescente diante de todos os desafios da pandemia e os olhares da câmera. Talvez estejamos diante de uma geração que não gosta de se expor, que não vai alimentar programas de Big Brother. E que vá ensinar aos pais uma nova relação com a imagem e os tantos reflexos no “espelho”.
Fonte: O Estadão.