Geralmente tudo começa de maneira inocente: alguém que se diz famoso aborda você anonimamente através de uma plataforma digital. Após muitas mensagens, essa pessoa envia uma foto sensual e pede que você retribua da mesma forma. Logo em seguida, você recebe ameaças e, sob chantagem, passa a realizar atos libidinosos para que seus momentos íntimos não sejam divulgados na internet. E assim, sem saber, você acaba se tornando vítima de um estupro virtual.
Recentemente, esse tipo de crime ganhou notoriedade com a novela “Travessia”, da Rede Globo, que abordou a temática por meio da personagem Karina, uma adolescente que é enganada no ambiente digital e termina sofrendo extorsão de um pedófilo.
Apesar de pouco debatido, o problema é comum e se encaixa nas novas formas de agressão contra as mulheres no universo cibernético. Um estudo realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015 apontava que mais de 70% das mulheres conectadas haviam sofrido algum tipo de violência online.
Diante disso, o que exatamente caracteriza um estupro virtual?
“De acordo com o entendimento doutrinário atual, o estupro virtual se caracteriza pela prática de ameaça ou coação, por meio da internet, com o intuito de garantir e realização de atos libidinosos, como forma de favorecimento sexual”, explica o advogado João Paulo Machado Rodrigues Cardoso.
Ele salienta que esse tipo de crime não se caracteriza apenas com o contato ou o constrangimento físico, mas também com atos que mantenham a vítima sob qualquer controle contra sua vontade.
“O estupro virtual é a realização de qualquer tipo de imposição à vítima, sendo o autor capaz de manter controle sobre ela, podendo ser feita chantagem de diversas formas, inclusive com a promessa de divulgação de imagens dela. Assim, pode ser caracterizado pelo conjunto de práticas realizadas por meio de sites – aplicativos de relacionamento, redes sociais – que objetivam a garantia de vantagens sexuais dos mais diversos tipos”, afirma João Paulo.
A advogada, consultora jurídica e especialista em lei geral de proteção de dados e crimes cibernéticos, Lorrana Gomes, concorda e diz que a Justiça encara o estupro virtual como uma variação do crime de estupro.
“É o mesmo crime previsto no art. 213 do Código Penal, no qual consta que é crime ‘constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’”, observa ela.
Lorrana destaca que não há necessidade de violência física ou carnal para que um ato seja considerado libidinoso, já que essa espécie de violência pode também ser cometida virtualmente. Sendo assim, pode-se dizer que tudo que é legalmente proibido no mundo real também é condenado nas interações online.
“No tocante a crimes praticados contra a dignidade sexual, a regra é que o ambiente virtual, guardadas as devidas proporções, é uma ‘extensão’ do mundo ‘real’. Isso significa que a internet não é ‘terra sem lei, protegida pelo anonimato’, como muitos pensam”, comenta João Paulo Machado Rodrigues Cardoso.
“Atualmente, é possível observar uma crescente tendência de responsabilização penal daqueles que praticam atividades de cunho ilícito na internet. Existem exceções, mas a tendência é essa”, complementa o advogado.
Perfil das vítimas
Embora existam várias complexidades para se traçar o perfil exato de quem sofre com esse tipo de crime, especialistas afirmam que as mulheres são a maioria das vítimas de estupro virtual.
“Em sua grande maioria, as vítimas são mulheres e jovens que passam muitas horas na internet, ou até mesmo menores de idade. Mas, como é comum nos casos do mundo chamado ‘real’, é importante entender que qualquer pessoa está suscetível a crimes virtuais”, esclarece Lorrana Gomes.
Para João Paulo Machado Rodrigues Cardoso, só mesmo a prevenção pode reduzir essa forma de abuso, especialmente entre os jovens e adolescentes.
“Para crianças e adolescentes, é necessário um acompanhamento parental estreito, a fim de que o acesso às funcionalidades da internet seja limitado. Hoje, os dispositivos eletrônicos já contam com ferramentas de controle parental, de modo que cada família pode decidir aquilo que o(a) filho(a) acessa na internet”, indica.
Além disso, ele sugere que os pais estejam sempre atentos a toda mudança comportamental de suas crianças.
“Qualquer sinal diferente deve ser observado como um alerta, de modo a evitar que tais agressões se perpetuem. O acompanhamento psicológico também é muito importante”, acrescenta.
Já para os maiores de idade, a prudência ainda é a melhor tática em casos de contatos digitais.
“Por mais fácil, sedutor e instigante que seja conversar com desconhecidos, nunca perca de vista que se trata de um desconhecido. Todo cuidado na internet é pouco, e, atualmente, precisa ser redobrado”, aconselha o advogado.
Como denunciar um estupro virtual?
Vítimas de estupro virtual costumam enfrentar sentimentos de vergonha e acabam tendo medo de denunciar as agressões que sofreram, achando inclusive que om crime que ocorre em ambiente virtual não é passível de punição. Por esse motivo, grande parte dos agressores permanecem impunes. No entanto, especialistas alertam que qualquer ato de violência – seja ele no mundo físico ou não – deve ser denunciado.
“Os crimes sexuais, em razão de sua natureza, são caracterizados pelo anonimato, pelo sigilo, o que dificulta a sua identificação e posterior responsabilização. Dessa forma, caso a própria vítima não tome a iniciativa, por si só, de expor o acontecimento do delito, seja por medo, seja por vergonha, este deve ser identificado de outras formas”, alerta João Paulo Machado Rodrigues Cardoso.
Lorrana Gomes lembra que os canais de denúncia são os mesmo para episódios de violência e abuso sexual. “O trâmite é o mesmo do crime offline: ir a uma delegacia e fazer um boletim de ocorrência. Porém, é importante ter cautela com as provas virtuais para não apagar o conteúdo criminal porque ele será crucial na hora das investigações”, avisa a consultora jurídica.
Nesses momentos, o acolhimento da família tem um papel fundamental. “O papel da família e dos amigos é fundamental e, muitas vezes, essencial. Isso porque, caso não decida relatar o que esteja passando, a família ou os amigos podem perceber que há algo errado pelo próprio comportamento da vítima, que muitas vezes se altera substancialmente, mormente se tratando de delitos de cunho sexual”, detalha João Paulo.
“Assim sendo, caso se percebam mudanças bruscas e repentinas de comportamento, tais como introspecção, hipersensibilidade, afastamento e/ou isolamento, recomenda-se tentar conversar com a vítima e buscar auxílio psicológico”, finaliza o advogado.
Fonte: O Tempo.