DNA indica que Luzio, esqueleto de 10 mil anos, é antepassado de indígenas atuais

Por Dentro De Tudo:

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Luzio é o habitante pré-histórico mais antigo encontrado onde hoje é o Estado de São Paulo. O esqueleto do homem que viveu por volta do ano 8000 antes de Cristo foi encontrado em 1999 próximo à divisa com o Paraná e recebeu esse apelido do arqueólogo e antropólogo Walter Neves, célebre por estudos com Luzia, a mais antiga das Américas. Luzio segue sendo estudado, e dados genéticos ajudam a compreender a história dele e de seu povo.

Em um trabalho que acaba de ser publicado na revista científica Nature Ecology & Evolution, pesquisadores apresentam evidências robustas de que esse homem pré-histórico e outros 34 indivíduos de 11 sítios arqueológicos foram antepassados dos povos indígenas atuais. Esse dado enfraquece a hipótese de que a população de Luzio, que viveu no Vale do Ribeira há cerca de 10 mil anos, não teria deixado descendentes.

O nome “Luzio” é referência ao esqueleto feminino de 12 a 13 mil anos descoberto em uma fenda na região de Lagoa Santa (MG) em 1974. Os dois, Luzia e Luzio, possuem um crânio com formato diferente dos povos indígenas atuais, porém os cientistas mostram que o DNA de ambos têm uma diversidade genética compatível com as populações nativas de hoje.

A equipe também apresenta no artigo o primeiro DNA fóssil de populações da Amazônia pré-colonial. A pesquisa é parte do projeto Histórias indígenas de longa duração: o Brasil pré-colonial pela ótica da antropologia virtual e da arqueogenômica, que pretende reconstruir a história dos povos pré-históricos através da construção do primeiro laboratório de arqueogenética da América do Sul a ser inaugurado na USP em outubro. 

Para Tiago Ferraz da Silva, pesquisador do MAE e primeiro autor do artigo, a pesquisa com DNA antigo, da qual ele é pioneiro no Brasil, é mais uma peça do quebra cabeça que deve ser complementada com contribuições de outras áreas. “A arqueogenética vem como mais um ponto de vista. Cada área tem um espaço de visão que limita a nossa percepção.”

Segundo André Menezes Strauss, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP que coordena o trabalho, esse é o segundo grande estudo de arqueologia genética sobre a pré-história brasileira. “O primeiro saiu em 2018, com o material de Lagoa Santa — os esqueletos do povo de Luzia. Cinco anos depois, nós focamos nos sambaquis, que são um dos fenômenos arqueológicos mais conhecidos do Brasil.”

Os sambaquis são montes planejados formados principalmente por conchas, mas que podem conter também centenas de sepultamentos humanos e uma grande variedade de artefatos de pedra polida. Durante cerca de 7 mil anos e ao longo de quase toda costa brasileira, os grupos sambaquieiros podem ter usado essas estruturas como marcos territoriais, moradias, cemitérios e locais de cerimônias. Um grande enigma para os arqueólogos é o desaparecimento dos povos com esses rituais há 2 mil anos.

Segundo Tiago da Silva, os esqueletos dos sambaquis apresentam uma preservação de DNA maior do que o dos sítios estudados anteriormente, principalmente os encontrados em solo úmido amazônico. Os dados genéticos atestam a hipótese de uma única grande migração pré-histórica para a ocupação humana da costa leste da América do Sul.

Um outro modelo que concorre com o que a pesquisa indica sugere dois grandes fluxos, o primeiro do povo de Luzia e outro dos ancestrais dos indígenas atuais. Nenhuma das duas teses ainda são completamente aceitas. “Se havia gente aqui antes do que as análises genéticas estão mostrando, esses habitantes não deixaram nenhum descendente e não se encontraram com as populações que vieram depois”, diz André Strauss.

Luzio e outro indivíduo sepultado há 9 mil anos na região de Pains (MG) não seriam geneticamente tão distantes das outras populações do mesmo período. A conclusão é que, provavelmente, todos os habitantes derivaram de um mesmo evento rápido de migração. Em um período posterior, a intensificação dos contatos entre as populações do interior e da costa resultou no declínio da construção de sambaquis. “Nós conseguimos perceber que o Luzio [e o indivíduo de Pains] fazem parte dessa grande radiação que chegou e que se estabeleceu na América do Sul. Não temos indícios de uma segunda leva migratória, ou seja, não temos força estatística para separá-los em outro grupo, embora eles pareçam um pouco diferentes do resto dos indivíduos. Ao mesmo tempo, vemos essa única leva se modificando ao longo do processo de ocupação do espaço”, sintetiza Tiago.

“Nós passamos anos observando a similaridade entre os sambaquis no que diz respeito à cultura material desses grupos, mas parece que deu uma bagunçada, no bom sentido, quando fomos para a genética”, brinca Rodrigo Elias Oliveira, pesquisador do Instituto de Biociências (IB) da USP e coautor do estudo. “Acreditou-se por muito tempo que fosse um grupo um pouco mais coeso, que fosse o mesmo grupo genético ao longo do tempo, mas como reforçamos no próprio artigo, os trabalhos com crânios e dentes da população sambaquieira feitos pelo professor Walter Neves e pela professora Maria Mercedes Okumura, no início dos anos 2000, já indicavam uma variabilidade, exatamente como encontramos no DNA por nós analisado.”

Embora apresentem similaridades culturais e uma origem comum, os resultados revelaram que as sociedades sambaquieiras do sul e do sudeste do Brasil tiveram trajetórias demográficas distintas. Os sambaquieiros da costa sudeste tem conexões genéticas com grupos de caçadores-coletores do nordeste do Brasil. Na região Sul, teria ocorrido há cerca de 2 mil anos uma intensificação dos contatos dos sambaquieiros com habitantes do interior do continente falantes de línguas proto-jê.

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