Legislação previa combater o tráfico negreiro; depois de promulgada, contudo, 750 mil escravos ainda foram trazidos ao país, fazendo com que a norma ficasse conhecida como algo ‘”para inglês ver”.
Em 7 de novembro de 1831 foi promulgada a primeira lei brasileira que visava a coibir de alguma forma a escravidão. Conhecida como Lei Feijó, em alusão ao então ministro da Justiça na época, padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843), previa, em seu texto, proibir o tráfico transatlântico de escravos, então trazidos da África para o Brasil.
A legislação causou um desmanche na estrutura oficial desse comércio escravocrata mas deixou florescer um eficiente sistema de contrabando.
Como havia uma intensa pressão da Inglaterra para que a escravidão fosse extinta, costuma-se dizer que a Lei Feijó acabou se tornando uma norma “para inglês ver”. Prova de sua ineficiência é que, mesmo depois de promulgada e, portanto, com a importação de novos escravos na ilegalidade no país, foram pelo menos 750 mil africanos que aportaram em solo nacional nessas condições, de acordo com informações levantadas pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador no Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha.
“O que se viu foi um contrabando sistêmico”, afirma ele. “Desses todos, apenas 11 mil foram apreendidos no porto e tiveram a situação declarada como contrabando, tornando-se então africanos livres. Uma fração mínima.”
Autor do livro ‘Imprensa e Escravidão: Política e Tráfico Negreiro no Império do Brasil’, o historiador Alain El Youssef, pesquisador na Universidade de São Paulo, explica que havia todo um contexto para a criação de tal lei, com Inglaterra e Estados Unidos à frente. “Além disso, as demais potências negreiras, Espanha e França, já haviam assinado acordos bilaterais com a Grã-Bretanha para seguir o mesmo caminho. Restava o Brasil, que adotou a mesma postura de duas maneiras: um tratado bilateral com a Grã-Bretanha e essa lei nacional, de 1831”, pontua ele.
Cerco ao tráfico de escravos
Nas altas rodas da elite aristocrata brasileira, a perspectiva era de um futuro sem comércio internacional de escravos. “Tanto que nos anos imediatamente anteriores à proibição estipulada pela convenção antitráfico os senhores procuraram fazer uma espécie de ‘estoque’, comprando mais africanos do que o necessário e optando por adquirir africanas jovens, tendo em vista uma futura reprodução endógena da população cativa”, diz El Youssef.
Era um tempo em que se entendia que o progresso do Brasil dependia da mão de obra escrava. Lima conta que essa preocupação era tanta que os escravocratas faziam contas para concluir que, com a quantidade de escravos existente e considerando a reprodução local, o regime escravocrata conseguiria sobreviver até o alvorecer do século 20 mesmo com o fim do tráfico.
Mas mesmo com a lei promulgada — e regulamentada no ano seguinte — não houve vontade política para implementá-la de fato. “Tanto os liberais quanto os conservadores estavam em consenso nesse ponto: o progresso econômico brasileiro se dava pelo braço escravizado, mesmo que fosse resultado de algo proibido”, explica Lima.
Um efeito prático da Lei Feijó foi o desmonte da estrutura que havia para a incorporação dos escravos no sistema produtivo brasileiro. Nesse sentido, pode-se dizer que a lei pegou. “As regiões de desembarque, de inspeção sanitária e burocracia foram eliminadas após 1831”, afirma a historiadora Renata Figueiredo de Moraes, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
“De fato, a lei não puniu todos os envolvidos no tráfico, o que era previsto em caso de aprisionamento de um navio que estivesse transportando homens e mulheres para a escravização. Mas a lei causou uma mudança estrutural na forma como esse comércio passou a ser feito. Se antes havia uma estrutura montada para isso, após 1831 tudo passou para a ilegalidade, os locais de desembarque mudaram e enquanto uns saíram do comércio, outros se fortaleceram porque sabiam operar o sistema na ilegalidade”, aponta ela.
Um exemplo foi o ocorrido na região do Valongo, antigo cais no Rio de Janeiro. Ali havia um local de desembarque, quarentena e venda de escravos. Tudo foi desmontado.
Legalização do contrabando
“Na prática, ocorreu uma descentralização das atividades negreiras”, diz El Youssef. “Se antes havia uma concentração do desembarque nos principais portos do Império, depois da lei eles passaram a ocorrer em locais diversos e mais afastados.”
Os contrabandistas utilizavam algumas artimanhas para evitar a identificação, adotando bandeiras de outros países — como Portugal e Estados Unidos.
No desembarque, havia várias estratégias para burlar a fiscalização. “Quando chegavam, o pessoal já armava as caravanas e rapidamente os africanos desembarcados já estavam em Minas Gerais, em Taubaté… A introdução deles era uma máquina”, pontua Lima.
© Oscar Liberal/Iphan Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, por onde passaram centenas de milhares de escravos
Segundo o pesquisador, autoridades envolvidas no esquema se encarregavam de forjar título de posse e padres fabricavam assentos de batismo. Rapidamente, o escravo produto de contrabando era “legalizado”, digamos assim, tornando muito difícil que, em caso de fiscalização futura, sua procedência irregular fosse questionada.
É por isso que tão poucos processos de alforria foram bem-sucedidos utilizando como base a Lei Feijó. Reconhecido como responsável por conseguir libertar por via judicial centenas de escravos, Luiz Gama (1830-1882) teria buscado argumentos nessa legislação em pelo menos 15 processos — conseguiu vitória, porém, em apenas dois deles, conforme pesquisa inédita realizada por Lima.
Além de todas as artimanhas que falsificavam uma legalidade dos escravos chegados após 1831, seja por falta de empenho político, seja pelas dificuldades inerentes a um país de dimensões continentais, a fiscalização era pouca e ineficiente.
“Os registros eram muitas vezes modificados em favor de traficantes de escravos, muitas coisas não eram averiguadas. Além disso, os próprios fiscais eram um recurso muito pouco utilizado”, comenta o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília. “Nos portos, o controle político e administrativo fica nas mãos de poucas famílias. Era grande o interesse para que não ocorresse fiscalização adequada.”
“Não houve por parte das autoridades um incentivo para a fiscalização”, acrescenta a historiadora Moraes. “Ao mesmo tempo em que se aprimorava as técnicas de desembarque em pequenas regiões, não havia como inspecionar uma vasta área que poderia ser a de desembarque desses navios, que tiveram seu tamanho reduzido, eram desembarcados à noite e com apoio de autoridades locais. Uma vez desembarcado, dificilmente homens e mulheres africanos e escravizados ilegalmente conseguiam a liberdade e a possibilidade de retorno para alguma região da África. Muitos permaneceram no Brasil sob a categoria de ‘africanos livres’ e não viram os responsáveis por sua vinda ao Brasil punidos.”
O tráfico de escravos ao Brasil só seria de fato coibido a partir de 1850, com a Lei Eusébio de Queirós. “Esta acabou pegando porque houve um desejo do Estado imperial de cumpri-la”, diz El Youssef. O contexto era outro e as pressões comerciais internacionais, sobretudo inglesas, forçaram uma mudança de mentalidade política na aristocracia brasileira.