“Atire o primeiro comprimido quem nunca usou medicamento por conta própria”. A frase da presidente do Conselho Regional de Farmácia (CRF-MG), Júnia Célia de Medeiros, reflete a preocupação neste momento em que uma nova variante do coronavírus, a ômicron, avança paralelamente a uma epidemia de Influenza por todo o Brasil: a automedicação.
“Temos acompanhado com preocupação que a automedicação ganhou ainda mais espaço, pois as pessoas com receio de ir a hospitais e consultórios e se infectar acabam tomando remédios por conta própria. Essa prática está fazendo desaparecer das prateleiras das farmácias remédios importantes que poderiam ser vendidos apenas com prescrição médica”, afirma a especialista.
Júnia é farmacêutica formada pela UFMG, foi professora universitária e, atualmente, faz a gestão farmacêutica do Hospital Osvaldo Rezende Franco, o Hospital Regional de Betim. Dos mais de 30 anos de profissão, 21 são dedicados ao SUS. Segundo a profissional, dados do Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos de Minas Gerais (Sincomfarma/MG) revelam uma alta de 200% na procura por medicamentos quando comparados dezembro de 2020 e dezembro de 2021. “Um aumento desses na venda de antigripais, antialérgicos, antitussígenos, vitaminas, remédio para dor e febre não pode ser desconsiderado’’, alerta a farmacêutica.
De acordo com uma pesquisa do Conselho Federal de Farmácia, o Brasil é um dos países que mais utilizam medicamentos no mundo e quase metade dos brasileiros (47%) têm o hábito de se automedicar pelo menos uma vez ao mês. Há casos de farmácias com estoques zerados de medicamentos antigripais aqui em Minas?
Sim, há muitos casos e a indústria farmacêutica está com dificuldades para repô-los. E não são só antigripais. Há falta também de antibióticos como amoxicilina e azitromicina, que não têm indicações para serem utilizados em quadros infecciosos das vias aéreas em casos de Covid, resfriados e gripes provocadas pelo vírus H3N2. Outra preocupação é com o Tamiflu , um antirretroviral, que é indicado especificamente em casos graves, na prevenção da replicação viral. No início do surto de gripe, algumas pessoas conseguiram comprar, mesmo as farmácias cobrando cerca de R$ 200 a caixa. Já foi detectada a falta do medicamento nas farmácias de algumas cidades mineiras.
Quais os riscos da automedicação?
No caso dos antibióticos, o uso abusivo está induzindo o aparecimento de bactérias multirresistentes. Já com os antitérmicos e antigripais, cada fórmula pode trazer algum tipo de problema. O Paracetamol, quando utilizado acima de quatro gramas, leva à hepatite química fulminante; a Dipirona, que é proibida em alguns países, diminui as células de defesa da medula óssea. É comum encontrarmos pessoas tomando dipirona diariamente. Por fim, o AAS ( Ácido Acetil Salicílico), muito comum nas fórmulas dos antigripais, causa irritação gástrica, que pode provocar sangramentos. Ele também é contra-indicado em casos de dengue, justamente por ter o potencial de provocar hemorragias.
Você acredita que a automedicação se deve, pelo menos em parte, à forma como a publicidade de remédios é feita no Brasil?
Com certeza, essa é mais uma das lutas do conselho. Precisamos da atualização da regulamentação da propaganda de medicamentos no Brasil. Os medicamentos não são bens de consumo comuns, e sim, bens de saúde, por isso sua propaganda está sujeita a regras específicas. A Resolução nº. 96/2008 da Anvisa é que dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos. O artigo 10 e o parágrafo único limitam a propaganda de medicamentos em drogarias, para a fidelização de clientes no estabelecimento. Além disso, é obrigatório constar sobre essas restrições mencionadas em todo material publicitário de divulgação e no regulamento dos programas de fidelização. Já o artigo 29 da mesma resolução define que a propaganda ou publicidade de medicamentos de venda sob prescrição veiculada na internet deve ser acessível, exclusivamente, aos profissionais habilitados a prescrever ou dispensar medicamentos, por meio de sistema de cadastramento eletrônico, devendo ser apresentado um termo de responsabilidade informando sobre a restrição legal do acesso, mas não é o que acontece na prática. O que o CRF/MG entende é que, devido a tantas formas de comunicação digital que surgiram nos últimos anos, é necessária uma atualização desta norma, vez que ela foi publicada em 2008. A resolução precisa ser contextualizada com essas novas tecnologias de propaganda e marketing. O conselho ainda orienta que quaisquer infrações à legislação sanitária realizadas pelo estabelecimento farmacêutico devem ser denunciadas à Vigilância Sanitária local e à Anvisa para as providências cabíveis.
Há farmacêuticos suficientes no Brasil e como a população pode recorrer a eles de maneira segura, em um momento em que estamos convivendo ao mesmo tempo com uma pandemia de Covid e com uma epidemia de gripe?
São mais de 200 mil farmacêuticos no Brasil. Em Minas Gerais, são mais de 28 mil, que atuam em oito mil farmácias, o que permite uma capilaridade suficiente para dar um grande fôlego ao sistema de saúde, em especial às Unidades Básicas de Saúde (UBS). A nossa orientação é que, caso a pessoa tenha sintomas leves de gripe, pode e deve procurar um farmacêutico para obter orientação com segurança sobre os medicamentos que são de venda livre, para aliviar os sintomas da doença. No Brasil, a lei garante que um farmacêutico tem que estar presente no balcão da farmácia em horário integral. Trata-se do artigo 16 da Lei 13.021, de 2013.
No atual momento, com o avanço veloz dos casos de Covid, e, em paralelo, aos registros de influenza, o debate sobre a possibilidade de adoção do autoteste voltou à tona. Qual a avaliação do conselho sobre os autotestes?
A testagem é importante e já deveria ter sido implementada no Brasil desde o começo da pandemia. O Brasil testa muito pouco, mas eu faço uma ressalva: o autoteste deve ser implementado a partir de uma política de saúde pública e estratégia de ação estabelecida pelo próprio Ministério da Saúde. Ainda falta a autorização desse uso. Por ser um produto para diagnóstico in vitro ele precisa ter primeiro uma regulamentação pela Anvisa e precisa ser registrado nesse órgão para que venha ser liberado. Uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2015 estabelece que os autotestes são proibidos no Brasil em casos de doenças como a Covid, por ela ser infecciosa e passível de notificação compulsória, ou seja, é obrigatório que as ocorrências positivas sejam informadas oficialmente aos órgãos de saúde. Tem que haver o laudo de um farmacêutico, de um bioquímico. Esse é um dos entraves. Como seria a notificação, já que o autoteste é feito em casa? E depois de feito o teste, a pessoas realmente vai fazer o isolamento?
Qual a opinião do Conselho Estadual de Farmácia sobre a regulamentação da profissão do técnico de farmácia?
O Conselho Estadual em consonância com o Conselho Federal é totalmente a favor da regulamentação da profissão do técnico ou auxiliar de farmácia, inclusive sou membro de uma comissão que debate o tema. A regulamentação da profissão de técnico de farmácia é uma aspiração antiga e vinha sendo reivindicada por eles e por nós, farmacêuticos. A definição clara de papeis dentro da farmácia é uma necessidade e vem a contribuir com a qualidade do atendimento ao paciente. É importante ressaltar que a proposta que está sendo discutida no conselho explicita que as atividades do técnico devem ser desempenhadas por um profissional que tenha curso técnico e que esteja permanentemente sob a supervisão direta e em apoio ao farmacêutico. Uma lista de atribuições fará parte da atividade e nada mais justo que a regulamentação, o que vai trazer segurança e agregar importância à profissão.
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