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A fome dispara no Brasil e atinge 33 milhões de pessoas

Por Dentro De Tudo:

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Ana Laura Queiroz*

 

“É muito triste, muito sofrimento, já pensei até em morrer. Ver os meninos precisando das coisas, pedindo e a gente não ter para dar.” O relato emocionado é de Cláudia Alves, de 33 anos, moradora da Barragem Santa Lúcia, Região Centro-Sul de BH. Ela vive com os dois filhos em uma pequena casa alugada na comunidade e está desempregada. A dona de casa Clélia Martins, de 52, também moradora da Barragem Santa Lúcia, é outra que depende de cestas básicas para conseguir alimentar a família. Ela vive com o filho, a filha e o genro, e a renda da casa vem apenas da sua aposentadoria.

 

As duas estão entre os 58,7% da população brasileira que vive com algum grau de insegurança alimentar. Isto representa 125,2 milhões de pessoas. Após dois anos de pandemia, o número de brasileiros sem ter o que comer quase dobrou no país. Atualmente, 33,1 milhões de pessoas convivem com a fome, 14 milhões a mais que no fim de 2020. Os números são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil.

 

 

O levantamento analisou dados entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir de entrevistas em 12.745 domicílios em áreas urbanas e rurais de 577 municípios. A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). Atualmente, os dados indicam o avanço preocupante da fome no país. Em contexto de pandemia, piora na crise econômica e com a falta de políticas públicas efetivas direcionadas, o número de domicílios com moradores passando fome saltou de 9% para 15,5%.

 

Para o professor do departamento de Sociologia da UFMG, Jorge Alexandre Barbosa Neves, apesar da pandemia e da crise econômica, a fome já era uma realidade preocupante para o país. “O Brasil entra em uma recessão em 2015 e 2016. A partir daí entrou em uma depressão econômica da qual nunca mais saiu, além da questão social que está muito associada à destruição do mercado de trabalho. O que estamos vendo hoje não é consequência só da pandemia, é resultado das políticas públicas.”

 

Ele destaca que os danos causados pela fome se estendem para outras áreas da sociedade. “Ela reduz a produtividade de trabalho no presente porque quem vive em insegurança alimentar precisa pensar o tempo inteiro em como arrumar comida. E no futuro, porque é um desinvestimento de capital humano. Crianças nessa situação não têm um desenvolvimento cognitivo adequado e, logo, não terão uma produtividade adequada quando crescerem.”

 

 

Insegurança alimentar Mais da metade da população do país vive com algum grau de insegurança alimentar (58,7%). De acordo com a pesquisa, 15,5% vivem com insegurança alimentar grave; 15,2% com insegurança moderada e 28%, leve. Os números indicam um aumento de 7,2% com relação a 2020. Conforme definição da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a insegurança alimentar ocorre quando um indivíduo não tem acesso físico, econômico e social a alimentos básicos necessários. A fome representa sua forma mais grave. “Ao olhar para a fome, é importante lembrar que cada número absoluto representa a vida de uma pessoa. E que mudanças em percentuais de insegurança alimentar – ainda que pareçam pequenas – significam milhões de pessoas convivendo cotidianamente com a fome”, descreve o Inquérito.

 

Esse é o caso de Cláudia. Ela conta que já passou fome diversas vezes. Não sabe nem por quanto tempo ficou sem ter comida para alimentar os filhos. “Eu tinha que ir pra rua pedir ajuda. Chegou uma vez que eu estava em uma crise, que só Deus.” Como não tem família morando em BH, a situação já se agravou várias vezes. “Sou só eu e meus filhos, já fiquei de cama e eles sem alimentação. Tinham que ficar pedindo ajuda para as pessoas.”

 

Mesmo antes da pandemia, a alimentação da família vem das cestas básicas entregues pela associação comunitária local e de doações que Cláudia recebe. “Vai chegando no final do mês começa a apertar. Às vezes a gente fica na porta do supermercado e pede. Não é todo mundo que ajuda.” Apesar de todas as dificuldades, Cláudia diz que não pode reclamar. “Tenho que agradecer a Deus. Por mais que venha a faltar (comida) e estamos sem condições, eu agradeço a Deus”, diz ela emocionada.

 

Já Clélia afirma que, apesar das dificuldades, nunca chegou a faltar alimento em casa. “Quando está acabando, Deus sempre envia as coisas. Mas a quantidade de comida diminuiu. Não comemos verdura, carne não tem dinheiro pra comprar, até o ovo é difícil.” Segundo ela, a situação piorou muito com a pandemia.

 

A alimentação da família se limita ao arroz com feijão e macarrão. Além disso, eles precisam do ‘vale-gás’ distribuído pela associação para preparar os alimentos. A dona de casa conta que na comunidade muitas famílias também precisam dos mesmos auxílios para não passarem fome. “Se não fosse essa ajuda, não sei o que seria de nós. Estaríamos com fome. É muito difícil”, desabafa.

 

Danusa Carvalho é fundadora da ONG A Rebeldia, parceira da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida em Minas Gerais e conta que o trabalho da entidade aumentou na pandemia. “Cada hora que fazemos o diagnóstico que a comida está faltando no prato do povo brasileiro, mais a gente trabalha.” A distribuição das cestas básicas e dos ‘vales-gás’ na comunidade são iniciativas da entidade, que nos últimos dois anos atuou em 78 municípios no estado. “Temos um critério muito grande para que estas cestas cheguem nas mãos de quem realmente está precisando.”

 

* Estagiária sob supervisão do subeditor Marcílio de Moraes

 

 

Retrato da fome

Em média, considerando todas as regiões do país, 3 em cada 10 famílias relatam redução parcial ou severa no consumo de alimentos. No Norte e Nordeste, são 4 em cada 10 famílias; Centro-Oeste e Sudeste, 3 em cada 10, e Sul, 2 em cada 10. As formas mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave) atingem fatias maiores da população nas regiões norte (45,2%) e nordeste (38,4%). No campo, a insegurança alimentar está presente em mais de 60% das casas. Desses, 18,6% das famílias convivem com a fome – valor maior que a média nacional. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9%. Em famílias com crianças menores de 10 anos, a fome dobrou, passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atinge 25,7% dos lares.

 

 

População negra é a mais afetada

 

Mesmo quando os rendimentos mensais ficam acima de um salário mínimo por pessoa, a insegurança alimentar é maior nos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara preta ou parda, diz o estudo. Cerca de 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com restrição de alimentos. A fome, nas residências comandadas por pessoas de cor/raça preta ou parda saltou de 10,4% para 18,1%. Segundo o professor Jorge Neves, esses números só reforçam a desigualdade social do país.

 

Entre 2004 e 2013, políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria reduziram a fome para menos da metade do índice inicial: de 9,5% para 4,2% dos lares brasileiros. Em 2018, última estimativa nacional antes da pandemia da COVID-19, a insegurança alimentar já atingia 36,7% da população. Em comparação a 2022, o aumento chega a 60%. Mesmo nos domicílios que recebem auxílio financeiro dos programas Bolsa Família e Auxílio Brasil, a fome é realidade para 32,7% das famílias que relatam recebimento dos benefícios e para 29,4% das que não recebem. Por outro lado, em domicílios com pelo menos um morador aposentado pelo INSS, a fome tem indicativos menores (11,9%).

 

Para o professor Jorge Neves, do departamento de Sociologia da UFMG o que o relatório mostra é que o Brasil retrocedeu 30 anos em relação ao combate à fome. “Retrocedemos três décadas na política de segurança alimentar no país. A diferença é que agora sabemos como resolver, o que falta é vontade política. Políticas de valorização da agricultura familiar, como o programa nacional de merenda escolar foram desmontados. Há uma incompetência de políticas públicas muito forte porque é barato combater a fome e a extrema pobreza, mas é preciso competência e boa vontade de fazer.”

 

Minas e BH
têm medidas

 

Em Minas, segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), o governo executa projetos de apoio imediato aos municípios e investe em ações para assegurar a efetividade das políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional, em especial às famílias em situação de vulnerabilidade social. “O Estado atua com políticas públicas continuadas e em situações de emergência e calamidade pública. Durante a pandemia e as fortes chuvas que atingiram o estado no final de 2021, as principais ações se concentraram em programas de transferência de renda e apoio aos municípios para que fosse garantida a renda mínima à população e seguridade dos direitos sociais expressos na Constituição Federal, incluindo a alimentação.”

 

Em Belo Horizonte, de acordo com a prefeitura, a identificação de famílias em situação de vulnerabilidade e a insegurança alimentar são medidas pelas faixas de renda através do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). Assim, para definir os beneficiários, como para a oferta de cestas básicas, por exemplo, são consideradas, entre outros públicos, as famílias inscritas no programa e que tenham renda per capita familiar de até meio salário mínimo e/ou famílias acompanhadas por serviços socioassistenciais do Sistema Único de Assistência Social.

 

Em fevereiro de 2022, eram 96.093 famílias extremamente pobres cadastradas no CadÚnico e 18.280 famílias pobres, segundo a PBH. O órgão municipal lembra que Belo Horizonte foi uma das primeiras capitais a criar uma política ampla para garantia da segurança alimentar durante a pandemia. Foram 275 mil famílias beneficiadas mensalmente, com a distribuição de mais de 5,4 milhões de cestas básicas e 860 mil kits de higiene. A PBH destaca que o município tem diversas políticas voltadas para esta população, que atendem 2.100 famílias, como a Assistência Alimentar às unidades socioassistenciais e de cidadania; Programa de Assistência Alimentar e Nutricional (Paan), os restaurantes populares e o banco de alimentos. (MA e ARL)

 

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