Se você mantém perfis nas redes sociais, certamente se deparou com o relato de um caso surpreendente nos últimos dias: um homem teria procurado ajuda jurídica para processar um hotel após ouvir da esposa que ela engravidou por entrar em uma banheira de hidromassagem do estabelecimento. No início desta semana, a história contada por uma advogada de Belo Horizonte em dois vídeos publicados no TikTok virou manchete em perfis de fofoca no Instagram e até em sites de notícia. Apesar da repercussão, o BHAZ decidiu não publicar uma matéria sobre o caso em primeiro momento. O motivo?
Bem… nossa equipe de reportagem soube, por meio de um parente próximo à advogada, que a história seria fictícia, uma “brincadeira”. Nesta terça-feira (22), Lucileide Lage, que se identifica no TikTok como “advogada FiFi”, concedeu uma entrevista e garantiu que realmente atendeu em seu escritório o casal em busca de auxílio jurídico. Ela, porém, fez uma revelação ao afirmar que a cliente não foi vítima de estupro, crime relatado no segundo vídeo de atualização do caso (confira abaixo).
A reportagem do BHAZ também ouviu a OAB (Ordem dos Advogados Brasil) e uma especialista no tema violência sexual contra mulheres para explicar informações conflitantes do caso que chamaram atenção nas redes sociais.
O relato no TikTok
No primeiro vídeo que viralizou nas redes, a advogada Lucileide Lage conta que estava em ligação com um cliente e explica o motivo do contato. Segundo ela, um cliente anterior indicou um senhor que desejava ajuizar uma ação. “Ele ficou fora de casa seis meses, a trabalho, na Europa. Quando retornou, a esposa estava grávida”, diz em um primeiro vídeo. “Muito bravo, tirou satisfação, ela [esposa] falou: ‘amor, a única coisa que fiz diferente foi quando estive no Rio com minha irmã, em tal hotel, realmente tomei muitos banhos de hidromassagem’”, explica a profissional, que é especialista em mediação de conflitos.
Ao longo do vídeo, que tem 3 milhões de visualizações, Lucileide relata que a mulher responsabilizou o hotel por não ter realizado higienização adequada da banheira de hidromassagem, o que alegava ter causado a gravidez. Assim, o marido tinha intenção de processar o estabelecimento e pedir valores relacionados até mesmo à criação da criança.
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Nesta terça-feira (22), Lucileide contou ao BHAZ que o primeiro vídeo foi publicado no perfil dela no TikTok em dezembro de 2021 e passou a viralizar em outras redes nos últimos dias, assim como uma segunda gravação de continuação da história – publicada em janeiro deste ano, em uma outra postagem. Nessa última gravação, a advogada revela que a esposa do cliente a procurou para contar que inventou a história da banheira e relatou, na verdade, ter sido estuprada.
Lucileide conta que a mulher disse ter sido arrastada na rua e abusada sexualmente e que, para evitar mais sofrimento ao marido, inventou ter engravidado ao tomar banho na hidromassagem. Veja o vídeo:
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Ao BHAZ, Lucileide contou que suspeitou de toda a história contada pela cliente e quis tornar o caso público por ser curioso, mesmo contendo o relato de um suposto crime de abuso sexual e um pedido de ajuda para realização de um aborto. “Postei em dezembro, mas esse fato na verdade ocorreu em novembro. Quando postei, já estava tudo resolvido. Aí eu conversei com eles, vou postar isso, por ser algo realmente algo inusitado”, diz.
Equívoco ao informar sobre aborto
No segundo vídeo gravado e divulgado pela advogada, que já foi visto mais de 450 mil vezes, ela narra o diálogo que teve com a cliente diante da revelação de um suposto estupro. “Ela disse que foi o meio que achou mais tranquilo [contar sobre a hidromassagem] para que o marido não ficasse tão devastado, e que na verdade ela estava saindo de um lugar e que estava na rua, quando foi pegar o carro dela, foi arrastada e estuprada. E a banheira seria menos doloroso para o marido dela que um estupro. Muito nervoso, se alguém mexesse com ela, enfim”, conta a advogada.
Na sequência, Lucileide emenda com uma informação equivocada sobre o serviço de saúde para mulheres vítimas de violência sexual. A profissional relata ter questionado à esposa grávida se ela registrou um boletim de ocorrência junto à Polícia Militar para solicitar um aborto no sistema de saúde. “Eu disse a ela que para fazer também uma situação dessa, ela tinha que ter feito um boletim de ocorrência, a polícia ia investigar, porque torna-se um aborto legalizado”, diz a advogada, que ressalta erroneamente que o procedimento pode demandar um tempo.
Um dia após divulgar o vídeo, a própria advogada publicou outra gravação no TikTok para corrigir a informação e esclarecer que não é necessário fazer o registro policial em casos de estupro para conseguir atendimento médico. Existem procedimentos obrigatórios no atendimento hospitalar para vítimas de estupro que desejam abortar exatamente para garantir a licitude do ato, que envolvem basicamente a realização de exames físicos e ginecológicos, além do relato do crime feito a profissionais de saúde e assinatura de termos de consentimento e responsabilidade. No Brasil, o aborto é permitido por lei nos casos em que a gestação implica risco de vida para a mulher, quando a gestação é decorrente de estupro e no caso de anencefalia.
Ao fim do relato, Lucileide diz que conversou com esposa e marido juntos, a pedido da cliente, e que o homem mostrou-se disposto a assumir a criança. A mulher, por sua vez, teria insistindo para realizar um aborto. A advogada explica ainda que o casal ficou de voltar a falar com ela sobre a decisão.
Estupro é desmentido
A informação de que a mulher teria inventado a história da hidromassagem para acobertar um estupro sofrido por ela levantou discussões junto aos internautas. Alguns se mostraram preocupados com o fato de, segundo a advogada, a cliente não ter procurado ajuda por vergonha. Outros questionaram a exposição do fato por meio do TikTok.
Ao BHAZ, Lucileide Lage disse nesta terça-feira (22) que ainda em dezembro a esposa desmentiu ter sido estuprada e se resolveu com o marido. A advogada relatou que não publicou a conclusão do caso para “deixar na imaginação das pessoas”.
“As pessoas se preocupam se estou faltando com ética, não estou, não exponho ninguém. Não coloquei o final para a pessoa não ser julgada. O final mesmo não houve nada de estupro e ele [o marido] aceitou. Ela disse que era estupro realmente, mas depois de dois dias ela desmentiu. A gente sentou, conversou, ele compreendeu, ela não fez aborto”, conta.
Questionada sobre deixar o caso em aberto, depois de tanta repercussão, Lucileide diz que já sabia toda a verdade quando resolveu publicar os vídeos. “Essa conversa com o pedido para publicar ocorreu no início de dezembro, mas não coloquei o final para deixar as pessoas pensarem. Quando eu postei já sabia de tudo, se fosse verdade a questão do estupro eu não colocaria, seria outra situação, totalmente diferente, como eu sei que não houve, eu coloquei”, justifica.
A advogada Lucileide Lage ainda contou como foi o momento em que a mulher voltou atrás sobre o suposto estupro, além do que ocorreu com o casal depois. “Ela ficou com medo e me ligou, encontramos, fomos ao shopping. Ela disse que não houve estupro, que teve um relacionamento, e perguntou se contaria para o marido dela ou não”, diz. “Respondi que não poderia contar para o marido, a não ser que ela quisesse”, continua. “É um cara muito compreensivo, gente boa, totalmente disposto a assumir a criança. Ela está prestes a ganhar a criança, com certeza”, revela.
A reportagem do BHAZ pediu à advogada que tentasse contato com os clientes para sondar a possibilidade de uma entrevista sob condição de anonimato. A profissional informou que o marido disse não ter vontade de falar sobre o assunto.
Caso fictício ou verídico?
Ao longo da semana, o caso da mulher que, até então teria engravidado na banheira de hidromassagem, foi notícia em diversos sites e portais em todo o Brasil. O BHAZ recebeu de um familiar de Lucileide a informação inicial de que o caso seria fictício, uma invenção. A advogada, por sua vez, explica que toda a situação gerou questionamentos, e que chegou a conversar brevemente com um sobrinho, que pode ter entendido errado o contexto do uso da palavra “brincadeira”.
“Quando eu fiz o vídeo, um sobrinho me questionou ‘tia, que história é essa’… e eu respondi: uma brincadeira lá no TikTok, mas não entrei em detalhes. E ele ‘tia, saiu não sei onde, o pessoal tá em cima, mas isso não é verdade não?’ É verdade o assunto, se eu quisesse alguma notoriedade, colocaria no Instagram do meu escritório. Não coloquei para não parecer uma propaganda, eu não quis isso”, explica. A possibilidade de um mal-entendido não foi descartada pelo familiar em um segundo contato com a reportagem.
“Se eu quisesse viralizar pelo lado profissional, colocaria no meu Instagram, do meu escritório, coloquei no TikTok, mais como uma brincadeira. Aí eu comecei a contar outros casos mais antigos, falo como ‘aconteceu essa semana’, por ser normal de acontecer com outras pessoas, outros casais”, relata.
Sobre atribuir os vídeos do caso publicados no Instagram a uma brincadeira, Lucileide diz que se atentou à primeira justificativa da mulher, de que teria engravidado sozinha na hidromassagem. “Não é no sentido de brincar com a vida do cliente, mas de contar a história, já que existem vários casos de pessoas com relatos parecidos, de mulher que engravidou sentada na cadeira, engravidou do boto. Não levei pro meu lado advogada pra ganhar notoriedade, por isso falo em brincadeira”, diz.
Por fim, Lucileide conta que, inicialmente, pensou em juntar casos como os que conta em um livro, mas que decidiu colocar no TikTok. Segundo ela, embora verídico o caso do casal, alguns detalhes foram mudados para evitar que fossem reconhecidos. A advogada ainda diz que se resguardou e pediu uma autorização por escrito aos envolvidos para que falasse sobre a situação na internet.
“Eles assinaram a autorização em novembro, pensei em fazer um livro, mas decidi colocar no TikTok. Ela [a esposa] me contou em dezembro o fato real, daí eu não contei o caso ali pra frente, mas postei obviamente sem citar nenhum detalhe. Mudei o país que o marido estava, a cidade também do hotel, para não caracterizar tanto”, diz. “Quando viralizou no TikTok eu liguei pra eles e pensei eu não vou contar o final para deixar na imaginação. Quem sabe dessa historia é o marido, a mulher e a irmã dela. Quando falei para eles que postaria, me resguardei e pedi uma autorização por escrito. Ontem começaram a soltar em Twitter, Instagram, mas enfim é um casal muito tranquilo, ela muito, ele mais ainda e não pode ter filho, então tranquilo para ele”, contextualiza.
O que diz a OAB?
O BHAZ procurou a OAB-MG (Ordem dos Advogados do Brasil) para sanar as dúvidas de usuários das redes sociais que questionaram a postura da profissional, alegando que há exposição dos clientes mesmo mediante a anonimato. O órgão não quis comentar o caso específico que viralizou no TikTok, mas ressaltou que ações de “marketing jurídico” devem ser compatíveis “com os preceitos éticos e respeitadas as limitações impostas pelo Estatuto da Advocacia, Regulamento Geral, Código de Ética e Disciplina”.
O Provimento 205/2021 aponta que as informações veiculadas devem ser “objetivas e verdadeiras” e que, caso a OAB solicite, as pessoas indicadas devem comprovar “a veracidade das informações veiculadas”, com pena de cometer infração disciplinar prevista no art. 34, inciso XVI, do Estatuto da Advocacia e da OAB, entre outras eventualmente apuradas.
Além disso, o 8º artigo do Provimento 94/2000 do Código de Ética e Disciplina aponta o advogado não pode comentar caso concreto, exceto “quando arguido sobre questões em que esteja envolvido como advogado constituído, como assessor jurídico ou parecerista, cumprindo-lhe, nesta hipótese, evitar observações que possam implicar a quebra ou violação do sigilo profissional”.
A OAB-MG ainda ressaltou que em casos de infrações podem ser instaurados processos disciplinares por meio de ofício ou mediante representação de qualquer autoridade ou pessoa interessada. “Quando ocorre o fato, é instaurado processo disciplinar que tramita em sigilo, até o seu término, só tendo acesso às suas informações as partes, seus defensores e a autoridade judiciária competente. Ao representado deve ser assegurado amplo direito de defesa”, explica por meio de nota.
Estupro é assunto sério
Ao BHAZ, a advogada criminalista Paola Alcântara pontua problemas causados por falsas denúncias de estupro que vão além da descredibilização e desqualificação dos relatos de vítimas reais de crimes sexuais. “É normal que muitas mulheres criem histórias para não contar que passaram por atos de violência, porque existe uma recriminação e uma revitimização da mulher que faz essa denúncia”, começa.
Já quando há uma denúncia, seja ela falsa ou não, cabem às autoridades empenhar diligências para corroborar aquilo que foi notificado. É neste ponto que a advogada reforça a importância de uma investigação bem feita, para que as informações corretas venham à tona. “O problema é que, às vezes, a investigação é mal conduzida, ou nem é conduzida, e acaba desencadeando um processo criminal que pode até levar a uma condenação injusta. E aí temos problemas para todos os lados”, pontua.
Para a advogada, é importante evitar que uma tentativa de resguardar a mulher que faz uma denúncia acabe levando a um processo irregular. “E o que delimita isso é justamente uma investigação cuidadosa, ouvindo pessoas, procurando provas. Para não deixar de preservar a vítima, mas também para que não se acuse alguém de forma irregular”, completa.
Paola Alcântara volta a citar a revitimização da mulher que denuncia um crime sexual, seja ao redor dela ou pelo próprio Estado, para finalizar. “É tudo muito problemático, há uma sequência que torna o sistema criminal muito mais propenso a falhas. Já que vamos apurar, que seja da melhor maneira possível. Temos que pensar na investigação como um instrumento de proteção para a sociedade”.
Onde conseguir ajuda?
Caso você seja vítima de qualquer tipo de violência de gênero ou conheça alguém que precise de ajuda, pode fazer denúncias pelos números 181, 197 ou 190. Além deles, veja alguns outros mecanismos de denúncia:
Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher
av. Barbacena, 288, Barro Preto | Telefones: 181 ou 197 ou 190
Casa de Referência Tina Martins
r. Paraíba, 641, Santa Efigênia | 3658-9221
Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher)
r. Araguari, 210, 5º Andar, Barro Preto | 2010-3171
Casa Benvinda – Centro de Apoio à Mulher
r. Hermilo Alves, 34, Santa Tereza | 3277-4380
Aplicativo MG Mulher
Disponível para download gratuito nos sistemas iOS e Android, o app indica à vítima endereços e telefones dos equipamentos mais próximos de sua localização, que podem auxiliá-la em caso de emergência. O app permite também a criação de uma rede colaborativa de contatos confiáveis que ela pode acionar de forma rápida caso sinta que está em perigo.
Seja qual for o dispositivo mais acessível, as autoridades reforçam o recado: peça ajuda.
O post A verdade por trás da história da mulher que disse ter engravidado em banheira de hotel apareceu primeiro em BHAZ.