“Alfabetização é tête-à-tête [frente a frente]”. Essa frase de Lucinea Maria Gomes Righi, professora do Núcleo de Alfabetização na Escola Municipal Professora Claudomira, em Lagoa Santa (MG), resume o desafio da alfabetização durante o ensino remoto: os educadores não puderam estar com seus alunos, fazendo as intervenções diárias e necessárias para desenvolver a leitura e escrita.
Durante a pandemia da covid-19, os professores alfabetizadores precisaram da ajuda das famílias de seus alunos. No início, porém, não foi fácil estabelecer essa comunicação direta e parceria para avançar na aprendizagem. Além disso, está o desafio de se conectar diante da falta de acesso à internet, quem não sabe fazer uso das ferramentas digitais ou pais e responsáveis que não conseguiam ajudar as crianças por não serem alfabetizados.
Com alunos da zona rural e de regiões sem acesso à internet, Débora Quitéria Barbosa, professora do 1º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Silvia Haddad, em Salto de Pirapora (SP), conta que conseguir se conectar às famílias foi “o pior pesadelo” no início da pandemia.
Com o passar dos meses, os educadores se adaptaram. No caso de Débora, ela usa o WhatsApp, apostilas impressas e visita os alunos sem acesso à internet. “Quem tinha acesso à internet conseguia fazer melhor, porque tinha a explicação por vídeos. Quem não, teve um pouco mais de dificuldade, porque muitos pais e responsáveis não têm condições de ajudar as crianças”, lembra a professora.
Maria Luiza Kawazoe dos Reis, professora do 2º ano da Escola Municipal de Educação Básica Professora Nazareth de Siqueira Rangel Barbosa, em Itatiba (SP), conta que, além das famílias, ela mesma teve que aprender a usar os recursos digitais e que esse um dos seus grandes desafios. Com uma turma com realidades diversas, Maria apostou em diferentes estratégias: usou WhatsApp, apostilas impressas e aulas síncronas no Google Meet.
Família: a maior aliada na alfabetização
No ciclo de alfabetização, no qual é necessário estar junto das crianças, o apoio familiar foi indispensável. “Se as crianças estão evoluindo, é por conta dos pais que sempre estão comigo”, garante Tamila Tavares, professora do 2º ano da Escola Municipal Analice Maciel de Jesus, em Tartarugalzinho (AP).
De acordo com as quatro professoras, a maior conquista do ensino remoto foi a parceria com as famílias. E isso foi estabelecido das mais diversas formas, mas sempre na base do diálogo. As docentes contam que criaram grupos com os pais e responsáveis dos alunos no WhatsApp, dando orientações, tirando dúvidas e mantendo uma comunicação constante.
Maria conta que conseguiu estabelecer uma comunidade nesses grupos, com trocas de sugestões. Tamila afirma que conseguiu cativar as famílias, indo além dos responsáveis: nos casos em que estes não têm acesso à internet ou não são alfabetizados, outros membros, como irmãos ou vizinhos, acabam entrando no grupos. Já Débora chegou a pegar o carro e ir presencialmente até as famílias mais afastadas e sem acesso à tecnologia para auxiliar os alunos.
“Essa minha relação com os pais dos meus alunos foi muito importante para desenvolver a confiança, eles confiarem no meu trabalho mesmo a distância e eu sei que eles estão realizando as atividades, acompanhando os filhos. Tivemos essa aproximação, eles conseguiram entender qual é o papel do professor, ter um respeito e uma admiração maior, valorizar um pouco mais”, conta Tâmila.
Na escola de Lucinea, as atividades que mais deram certo foram aquelas que envolveram diretamente as famílias. Ela conta que momentos de contação de histórias e de realização de receitas são alguns dos exemplos que funcionaram bem quando os responsáveis foram participativos. “Com esse resultado, acho que os outros fluem”, afirma.
Alfabetização no ensino remoto: o que deu certo?
Além da parceria com as famílias, os resultados positivos na alfabetização também podem ser atribuídos às atividades preparadas pelas professoras. Nesse caso, a chave do sucesso foi a adaptação do conteúdo para o remoto.
Nas apostilas enviadas para casa, as professoras incluíam, além das atividades dos alunos, roteiros a serem seguidos pelos familiares. “Na sala de aula, eu foco no estudante na hora de montar as tarefas. Em casa, não basta eu montar a atividade para o aluno, eu tenho que dar dicas para a família de como fazê-la com a crianças”, explica Lucinea, que ressalta que essa é uma das particularidades da alfabetização, já que, na maioria dos casos, as crianças ainda não têm acesso direto às tecnologias pela pouca idade.
Como preparar um as atividades para a alfabetização no ensino remoto
Além de pensar nas crianças, as professoras garantem que é essencial que o contexto familiar seja levado em consideração, já que os responsáveis são o caminho do aprendizado para as crianças durante a pandemia
– Se coloque no lugar da família: envie um roteiro claro explicando a maneira como os responsáveis devem aplicar aquela tarefa para a criança;
– Lembre-se de que você não estará presente: os enunciados devem ser simples e diretos;
– Leve em consideração o contexto dos seus alunos: mescle atividades mais avançadas, que consigam prender a atenção dos alunos e famílias que têm mais facilidade, com atividades mais simples, que consigam ser realizadas pelos estudantes que ainda não alcançaram determinadas habilidades;
– Dê atenção aos casos específicos: se alguma família tem mais dificuldade, envie atividades específicas para aquela criança. Vale apostar em jogos, propostas de recorte e cole e outras ferramentas mais lúdicas.
– Pense em propostas fáceis de fazer em casa: desenvolva tarefas que possam ser cumpridas com os materiais que as crianças têm à mão dentro de casa;
– Aproveite a tecnologia: quando possível, utilize o WhatsApp para tirar as dúvidas dos alunos e dos familiares;
– Peça que façam registros: se houver a possibilidade, solicite para que os responsáveis enviem vídeos das crianças realizando as atividades. Dessa forma, é possível fazer diagnósticos a distância, notando pegada de lápis, direção de escrita e traçado de letras, por exemplo. Esse tipo de análise ajuda a planejar as próximas atividades.
Com esse trabalho conjunto, as educadoras afirmam que muitos alunos conseguiram obter bons resultados. Tâmila conta, por exemplo, que seus estudantes conseguiram dar passos importantes na leitura e na produção escrita –habilidades que conseguiu estimular através de conteúdos enviados via WhatsApp.
Para Débora, os resultados positivos foram uma grata surpresa. “A gente tinha muito medo de não ter resultados bons. Porque, na alfabetização, você tem que estar ali com a criança, tem que dar uma atenção. No final, no caso das famílias que realmente participaram, que assistiram aos vídeos e ajudaram os filhos, nós tivemos bons resultados. Isso deixou a gente muito feliz”, comemora.
O que precisa ser recuperado?
No entanto, quando as famílias não conseguiam participar como as professoras esperavam, pelos motivos mais diversos de cada realidade, a aprendizagem ficou comprometida. “Se os responsáveis não nos ajudaram nesse momento, a gente não conseguiu avançar com a criança”, comenta Lucinea.
Além desse aspecto, as professoras afirmam que as atividades que não foram adaptadas ao contexto também não funcionaram. Tâmila lembra que chegou a enviar o livro didático para as famílias, mas as tarefas realizadas nele “não surtiram muito efeito”. “A gente sabe que o livro didático tem que ter aquela interação entre as crianças e o professor. Quando a gente envia para casa, o responsável não tem toda aquela didática que a gente desenvolve em sala de aula”, avalia.
Os problemas não foram só esses. Segundo Lucinea, alguns aspectos da alfabetização não deram certo no ensino remoto mesmo com a adaptação dos materiais e apoio familiar. Ela avalia que fazer o diagnóstico a distância é muito desafiador e que, por isso, fatores como o traçado de letra, pegada de lápis e direção de escrita, por exemplo, são difíceis de serem percebidos pelas famílias e mais difíceis ainda de serem ajustados pelas professoras.
Diante disso, muitos aspectos terão que ser retomados durante o contexto híbrido ou presencial. As professoras aconselham que na volta presencial à escola sejam realizadas avaliações diagnósticas. Só assim é possível perceber o nível em que os alunos se encontram e traçar estratégias para recuperar o que ficou para trás.
O foco das atividades híbridas
A escola em que Débora dá aulas voltou presencialmente com os alunos divididos em três grupos, sendo que um deles é de quem permanece 100% remoto. De forma não presencial, a professora realizou um diagnóstico dos seus 23 alunos do 1º ano. “Se nós estivéssemos em aula presencial, esse cenário seria outro. Nós teríamos no máximo uns três pre-silábicos, e a grande maioria já seria silábico-alfabético em transição para alfabético”, avalia.
Feita essa verificação, é hora de planejar as atividades e intervenções para avançar nas aprendizagens. “A gente vai ter que correr atrás desse prejuízo. Vamos fazer a criançada desenvolver aquilo que elas ainda não desenvolveram”, diz Débora.
Como usar ideias do ensino híbrido na Alfabetização
Na escola de Maria, o processo de retomada foi parecido. Seus alunos do 2º ano estão divididos em três grupos que se revezam. Os estudantes foram divididos por níveis para facilitar a atuação da professora. “Eu tenho um grupo de 27 alunos, 12 estão alfabetizados ortograficamente. Agora, eu estou trabalhando na sala com três níveis diferentes: a turma A, que está alfabetizada; a turma B, que está a um passinho de ser alfabetizada; e a turma C, que ainda não associou a fala com a escrita”, diz a professora, que está traçando estratégias específicas para cada grupo.
Além de correr atrás do que não foi desenvolvido, Maria afirma que o momento do retorno também é hora de acolher as crianças, ouvir suas dúvidas e medos e estabelecer um ambiente acolhedor.
Tamila acredita que, no balanço final desse um ano e meio de alfabetização, os resultados positivos devem ter mais enfoque que os negativos. “O professor precisa comemorar qualquer avanço que seu aluno tenha, porque a gente não pode comparar esse período com uma aula presencial. Se a criança aprendeu o mínimo nesse momento, pelo menos a gente conseguiu atingir um pouquinho esses objetivos. Qualquer pequeno avanço que a criança tenha precisa ser considerado, comemorado e valorizado”, afirma.