Imagine se, por meio da mesma picadinha de agulha em seu braço ao fazer aquele exame de sangue de rotina, você pudesse descobrir se tem algum câncer. O frio na barriga aumentaria na hora de pegar o resultado, mas, pensando na chance de ouro de receber um tratamento precoce e derrotar a doença, seria bom demais.
Há quem diga que, mais dia, menos dia, isso fará parte do nosso check-up. E a ideia não é nada absurda. Hoje mesmo, nos Estados Unidos, já existem três laboratórios oferecendo essa possibilidade e prometendo flagrar pelo menos os 20 tipos de tumores malignos mais incidentes por lá.
Mas, cá entre nós, ainda resta um bom caminho até a gente poder confiar plenamente que a chamada biópsia liquida não deixaria escapar um caso ou outro, isto é, quando o câncer é muito inicial.
Por enquanto, ao realizá-la, cerca de metade das pessoas com um câncer que ainda engatinha pode receber um resultado negativo simplesmente porque não foi achada nenhuma célula maligna ou, melhor dizendo, nenhum material genético dela no plasma, que é a parte líquida do sangue. E, claro, isso não quer dizer que a doença não exista.
“A biópsia líquida acaba sendo muito mais eficiente quando há metástase”, reconhece a biomédica baiana Gabriela Félix, gerente do laboratório de oncologia da Igenomix Brasil, multinacional que sempre foi referência em genética da reprodução e que, de uns tempos para cá, investe também na área do câncer.
Faz sentido a biópsia líquida funcionar melhor em estágios mais avançados dessa doença: “O tumor sempre interage com o ambiente do nosso organismo e é como se desprendesse pedacinhos”, descreve Gabriela. “Naturalmente, isso acontece com maior intensidade quando ele está muito ativo.” Leia, quando está se disseminando.”
Sem contar que, se o câncer já se espalhou, há mais focos dele pelo corpo e, daí, a tendência é de você encontrar uma quantidade um pouco maior dessas pistas moleculares abandonadas no plasma sanguíneo, facilitando ligeiramente as coisas. “Ligeiramente” porque, no fundo, é sempre uma quantidade ínfima.
“Até porque essas células doentes ou esses pedacinhos delas não permanecem ali, na circulação, para sempre”, diz Gabriela. “Eles acabam sendo quebrados pelo fígado e excretados pelos rins, indo embora.”
Mas, em geral, como todo câncer acaba sendo banhado por sangue, o plasma guarda todos os seus segredos. “E mesmo assim, em alguns tumores, porém, embora ninguém saiba direito o motivo, a gente de fato não consegue pescar sinais o suficiente no plasma. E aí é preciso buscar outros fluidos como alternativa.”
É o que acontece, por exemplo, com os tumores no cérebro: costuma ser mais produtivo colher amostras do líquido espinhal. Já para entender o que está acontecendo com um tumor de bexiga, a urina pode ser mais útil. Aliás, bem mais útil.
Isso porque, se o papel da biópsia líquida no diagnóstico continua rendendo uma bela discussão, a realidade é que ela tem uma série de outras aplicações no monitoramento e no tratamento do câncer — e, aí, é capaz de fazer total diferença. Isso, sim, nem se discute.
Para escolher o melhor tratamento
Fique claro o seguinte: a biópsia convencional, isto é, aquele procedimento no qual é retirado um pedaço do tecido suspeito, continua sendo o padrão-ouro para se estudar a genética de um câncer. Mas, às vezes, ela não é suficiente. E foi isso o que abriu espaço para a biópsia liquida.
“No caso de um câncer de pulmão, por exemplo, ela o exame convencional é feito por meio de uma agulha fina que o médico introduz ali duas ou três vezes para aspirar um pouco do tecido”, conta o biólogo gaúcho Gabriel Macedo, que é diretor de oncologia de precisão da Igenomix Brasil.
O problema é que, em cada aspirada com a agulha, sai apenas uma tripinha ínfima de tecido e, no final, a amostra pode ser muito exígua. “Daí que, entre 20% e 30% das vezes, não temos DNA suficiente para fazer o sequenciamento”, conta Macedo. “E ele seria mais importante do que nunca no câncer de pulmão.”
Isso porque, nos últimos anos, os tratamentos oncológicos se tornaram cada vez mais personalizados, capazes de agir quando um câncer tem essa ou aquela variação genética específica. E provavelmente nenhum outro tumor ganhou tantas novas opções terapêuticas quanto o de pulmão. “Só que precisamos do teste genético para saber qual delas seria a melhor indicação”, explica o biólogo, pegando dois blocos do tamanho de caixas de fósforo para eu ver.
É em blocos assim, feitos de parafina, que são conservados os tecidos retirados nas velhas biópsias. Em um deles, enxergo uma grande macha escura. “Só de bater os olhos, sei que este não é um câncer de pulmão”, diz Gabriel Macedo, que então me mostra o segundo bloquinho de parafina, onde mal dá para ver algo dentro. “Este aqui, sim, tem cara de uma amostra pulmonar e o primeiro gargalo é o seguinte: o patologista já vai usar uma boa quantidade do que está aqui, sobrando ainda menos para os testes genéticos.”
Por essa razão, quando isso acontece os oncologistas apelam para a biópsia líquida . A primeira aprovação do FDA para realizá-la foi em 2015, justamente para contornar essa dificuldade nos testes genéticos do câncer de pulmão e, assim, saber que droga funcionaria nele.
Para explicar por que o câncer voltou
Às vezes, depois de um ano de aparente trégua, o tumor dá as caras de novo. “Então, vamos precisar de mais um teste genético para entender o motivo”, conta Gabriel Macedo. “Só que o paciente, com o organismo tomado pela doença, pode se encontrar debilitado demais para se submeter à biópsia convencional e, então, apelamos para o sangue.”
Em seis de cada dez casos assim, há uma mutação conhecida por T790m, que faz o câncer de pulmão ficar resistente ao tratamento que tinha sido usado até então. “A biópsia líquida consegue apontar se essa mutação está presente, o que é super valioso porque já existe uma droga para essa mutação e, ao empregá-la, você prolonga a vida desse indivíduo.”
Para diminuir a perda de tempo
Às vezes, quando alguém retira um câncer no comecinho, fica o que os médicos chamam de doença residual, a qual ninguém estava enxergando.
Em março deste ano, por exemplo, cientistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, publicaram um trabalho com 88 pacientes que descobriam um tumor de pulmão assim, bem no início, e que foram operados com o firme propósito de colocar um ponto final no assunto.
Só que, pelo sim, pelo não, todos continuaram fazendo um acompanhamento com biópsia líquida de tempos em tempos. “Resultado: ela alertou que o câncer tinha retornado com 200 dias de antecedência”, conta Gabriel Macedo. “A identificação precoce faz com que a gente aja antes, aumentando a chance de sucesso.”
Esta, portanto, é mais uma possível indicação: “Após um tratamento curativo, o paciente poderia fazer uma biópsia liquida a cada seis meses”, pensa o biólogo.
No tumor que se espalhou pelos ossos
Há dois anos, foram aprovados medicamentos chamados de inibidores de PARP que podem beneficiar 28% dos homens com tumor de próstata metastático. “Mas aí é que está: 40% dos testes feitos com amostras de tecido vão falhar e não irão me mostrar quem são aqueles que tiraram vantagem usando esses inibidores.”
Isso porque, muitas vezes, o câncer que nasceu na próstata reaparece nos ossos. “E nada mais difícil do que extrair DNA de uma amostra de ossos para fazer um teste genético”, observa Gabriel Macedo. “Esse é mais um cenário em que a biópsia líquida ganharia força.”
Pergunto, então, se o mesmo não aconteceria em outros tumores com metástase óssea. “Em princípio, sim. Sempre poderei fazer um biópsia líquida de qualquer tumor. Só preciso ficar cauteloso com um resultado negativo, porque ele não necessariamente quer dizer que a pessoa não tenha a alteração que buscava. Talvez ela só não tenha sido encontrada com facilidade no sangue.”
Para complementar a biópsia tradicional
Há quem diga que a biópsia líquida possa ser até melhor do que a tradicional no câncer de ovário. São necessários mais estudos até se propagar uma afirmação dessas. Mas o fato é que algumas mutações nos famosos genes BRCA 1 e BRCA 2 nem sempre são detectadas nas amostras de tecido ovariano.
“Uma mutação nunca aparece no tumor inteiro, como se suas células fossem clones”, diz o diretor da Igenomix. “Ela pode se concentrar em uma pequena porção dele e a biópsia, por azar, pegar a amostra de um pedaço diferente”, diz.
Já com o plasma sanguíneo, o problema não existe: ele arrasta um pouco de tudo o que há no tumor. Por isso, é sempre uma boa opção para complementar o primeiro exame.
Fonte: UOL.