Quando o quarteto brasileiro, formado por Gil, Gal, Caetano e Bethânia, materializou-se no palco do Royal Albert Hall, em Londres, foi ovacionado pela plateia meio estrangeira, meio conterrânea. Era junho de 1994 e o grupo ainda não ostentava o título de Doces Bárbaros, mas já carregava a química que só eles tinham, e que resultaria em uma turnê e em um documentário dois anos mais tarde. O ciúme fisgou Caetano quando soube da enorme fila formada na cidade dias antes à espera pelo Sepultura, banda brasileira de mais notável carreira internacional. Mas não havia o que fazer: o momento era mesmo do heavy metal mineiro. Trinta anos depois, em 2024, o Sepultura se despede dos palcos, enquanto aquela doce química sustenta o que há de mais bárbaro em Caetano Veloso e Maria Bethânia, que se lançam em turnê conjunta pelo Brasil. Os irmãos estiveram nesse sábado (7) em Belo Horizonte, a terra do Sepultura. Na segunda cidade por onde passam, um estádio lotado testemunhou um espetáculo histórico, um momento único.
Os primeiros passos da caminhada que terá, ao fim de dezembro, percorrido 10 paradas já foram dados. Em agosto, a Farmasi Arena, no Rio de Janeiro, recebeu os irmãos por quatro noites, em dois finais de semana seguidos, entre os dias 3 e 11. Nesse sábado (7), marcado pelas celebrações de aniversário da Independência do Brasil e do Mercado Central de Belo Horizonte, a capital mineira ganhou outro motivo para celebrar. Caetano e Bethânia voltaram a se apresentar pela turnê — de data única em Minas —, num Mineirão tomado por mais de 50 mil pessoas, antes de seguir caminho pelas oito capitais restantes.
Ao contrário da setlist (veja completa ao fim da matéria), o que se viu, logo na abertura da apresentação, não foi apenas alegria, alegria. Ela também estava lá, mas dividiu espaço com lágrimas de emoção inenarrável compartilhada entre os presentes. O sentimento de aperto ficou mais claro adiante, quando os irmãos orquestraram, juntos, a resposta para todas as coisas: tempo, tempo, tempo, tempo. Em 2024, Caetano e Bethânia completaram, respectivamente, 82 e 78 anos, e não devem demorar a puxar as despedidas dos palcos. O público parecia sentir. Antes disso, porém, deu tempo do coro entoar a (nem tão) plenos pulmões o hino dos esperançosos em tempos de ameaças climáticas: “gente quer respirar ar pelo nariz”, sob o céu cinzento de BH que sofre sem chuvas há 143 dias.
Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei. “Tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce”, teria dito. O Gauss, na época, gravou, depois Caetano regravou sob o título de “Tropicália”, composição que também dá nome a um dos mais importantes movimentos culturais da história do Brasil. As homenagens ao legado tropicalista dos irmãos não faltaram: começaram pela faixa-título e seguiram por “Marginália II” e “Um Índio”, num suco inebriante de tambores e metais. “Cajuína” veio em sequência, cumprindo a função medicinal de origem e fechando o primeiro ato do show, com duas lendas sobre o palco.
A sós
Instantes após o apagar de luzes que deu descanso à Maria Bethânia, o irmão mais velho assumiu as rédeas do espetáculo em bloco solo. Fê-lo em tom metalinguístico, “Sozinho”, se debruçando sobre os hits que não podem, em hipótese alguma, ficar de fora de uma seleção como aquela. O fardo do sucesso não parecia pesar para Caetano, que deu novo sopro a clássicos como “O Leoãozinho”, “Você Não Me Ensinou A Te Esquecer” e “Você É Linda”, mesmo após anos de repetições.
Antes de prosseguir, o cantor prestou os devidos agradecimentos aos responsáveis pelas faixas cantadas até ali: “A Peninha pela composição de ‘Sozinho’ e à Sandra de Sá e Tim Maia, que fizeram a canção conhecida. Quero agradecer também a Fernando Mendes, autor de ‘Você Não Me Ensinou A Te Esquecer’, que eu gravei para um filme de Guel Arraes (Lisbela e o Prisioneiro)”, disse, em pausa para recuperar o fôlego. Foi também quando a surpresa veio: “Por fim, quero agradecer ao pastor Kleber Lucas, pela música que eu vou cantar agora”, lançou, antes de apresentar sua versão de “Deus cuida de mim”, faixa que ressoa entre as igrejas evangélicas do país. Um dos poucos momentos do show em que o público não acompanhou em coro.
Noutro momento de luzes baixas, a mais sóbria dos Bárbaros se reapresentou ao público. O irmão aproveitou a deixa para descansar, depois de mais de uma hora de cantoria ininterrupta. Em balanço com o bloco anterior, solo, a intérprete deu vida às canções que a consagraram como uma das maiores vozes da música brasileira, com destaque para “Brincar de Viver” e “As Canções Que Você Fez Pra Mim”. A falta de “Cheiro de Amor” incomodou parte dos presentes. O momento de Bethânia teve fim ao som de “Vida”, composição de Chico Buarque, em claro sinal de que o espetáculo se encaminhava para o fim. “Sei que além das cortinas são palcos azuis e infinitas cortinas com palcos atrás”, pregou a artista em consolação, e seguiu para o quarto final.
Epílogo
No retorno de Caetano, o verde e o rosa da Estação Primeira de Mangueira pediram licença ao azul e branco para colorir o Mineirão. A bandeira tremulante nos telões deu pano pro pot-pourri de exaltação à escola de samba que mesclou “Sei lá, Mangueira”, “A Meninas dos Olhos de Oyá” e outras faixas. No clima de festa, os irmãos aproveitaram para relembrar a saudosa Gal Costa, homenageada em “Baby” e “Vaca Profana”. O sorriso estonteante da voz da geração não saiu das projeções por duas músicas seguidas. Gilberto Gil, o quarto Bárbaro, apareceu em imagens estáticas.
Antes da cartada final, Caetano e Bethânia se arriscaram em “Gita”, de Raul Seixas, e “Fé”, de Iza. “Fé pra quem é forte, fé pra quem é foda, fé pra quem não foge à luta, fé pra quem não perde o foco, fé pra enfrentar esses filhas da puta”, manifestaram, já nos momentos finais de um show banhado à religiosidade. “Reconvexo” pôs o público a requebrar novamente, antes da dupla reconsiderar “Tudo de Novo” após seis décadas de carreira e duas horas de show. No apagar das luzes as vozes pediram bis e foram atendidas: “Odara” fechou a noite, pra ficar tudo joia rara.
Mais do que um produto a ser vendido, a turnê dos irmãos promove um resgate histórico da caminhada que os trouxeram até aqui. Da Tropicália ao evangelismo, a apresentação passeia por lembranças e personagens importantes para as canções mais relevantes dos dois. Relevância essa que, acertadamente, não vê o sucesso comercial como régua principal da seleção. Talvez por isso parte dos pagantes tenha criticado o repertório da apresentação, que, de fato, deixou algumas faixas mais conhecidas de fora, mas nada deixou a desejar aos que compareceram pra prestar ode à música popular brasileira.
Caetano Veloso e Maria Bethânia seguem, agora, rumo à Curitiba, para nova apresentação da turnê, em 21 de setembro.
Setlist do show
Alegria, Alegria
Os mais doces bárbaros
Gente
Oração ao tempo
Motriz
Não identificado
A Tua Presença
13 de maio (citação)
A Donzela se Casou
Samba de dois rios
Milagre do Povo
Filhos de Ghandi
Dedicatória
Eu e a água
Tropicália
Marginália II
Um índio
Cajuína
Sozinho
O Leãozinho
Você não me ensinou a te esquecer
Você é Linda
Deus Cuida de Mim
Brincar de Viver
Explode Coração
As canções que você fez pra mim
Negue
Vida
Sei Lá Mangueira
A Menina de Oyá
Exaltação a Mangueira
Onde o rio é mais baiano
Baby
Vaca Profana
Gita
O Quereres
Fé
Reconvexo
Tudo de Novo
Odara
O post Caetano e Bethânia contam história de devoção à MPB em Mineirão lotado apareceu primeiro em BHAZ.
Fonte: BHAZ. Foto: Thiago Cândido/BHAZ