Cerca de 150 mil adolescentes mineiros com idades entre 13 e 17 anos já sofreram algum tipo de violência sexual ao longo de suas vidas. O número representa 13,6% (156.536) do total de 1.151.000 pessoas nessa faixa etária que vivem no Estado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A porcentagem foi levantada por uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) baseada em um levantamento feito pela Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE). O estudo foi realizado em escolas públicas e privadas do Brasil, com 159.245 adolescentes.
Gabriela*, de 16 anos, uma das vítimas dessa violência, carrega o trauma de ter sido estuprada quando tinha apenas 4 anos. Ela mora na região metropolitana de Belo Horizonte.
“Eu sai de carro com um tio que minha família tinha muita confiança, ele me levou para um lugar ermo e manteve relação sexual comigo. Ele também me ameaçou e disse que se eu contasse para alguém minha mãe iria morrer. Na época, eu tive dor e sangramento e minha mãe desconfiou, mas eu só tive coragem de contar o que aconteceu quando eu fiz 13 anos. Quando a gente é criança não sabe nem o que está acontecendo direito, e esses abusadores se aproveitam. Atualmente, eu conto para amigas o que passei e descubro que o número de pessoas que já passaram por algum tipo de violência sexual é muito maior que se imagina. Claro que nem sempre é um estupro, mas alguém que passou as mãos em seu corpo, tentou beijá-la a força ou algo assim”, relata Gabriela*.
Números preocupantes
A professora Deborah Carvalho Malta, da Escola de Enfermagem da UFMG, que coordenou o estudo, avalia que a pesquisa realmente mostra que os números de adolescentes que já sofreram violência sexual são preocupantes. “A pesquisa foi feita com uma amostra muito grande de estudantes. No Brasil, a prevalência de estudantes que já sofreram algum tipo de violência sexual é de quase 15%, isso é uma prevalência muito alta”.
Na pesquisa, a violência sexual com relação aos alunos é definida como: “qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa – de qualquer sexo – a ter, presenciar ou participar de alguma maneira de interações sexuais ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção”.
O estudo considera que qualquer tipo de violência sexual resulta em danos sociais e psicológicos às vítimas. “Destacam-se questões psicológicas, como ansiedade, raiva e pensamentos suicidas, desempenho escolar insatisfatório e comportamentos de risco, como consumo de álcool, tabagismo e uso de drogas. Ademais, sabe-se que as consequências da violência repercutem a longo prazo e podem interferir nos relacionamentos, na socialização e até mesmo nas futuras condições de moradia. É comum o relato de pessoas sem teto de que a principal razão para estarem em situação de rua é a tentativa de escapar da violência vivenciada em ambiente doméstico”, foi escrito na pesquisa.
Ajuda
Gabriela* faz terapia desde os 10 anos de idade e foi com a ajuda psicológica que conseguiu falar sobre o estupro e lidar com a violência sexual. “A verdade é que, até hoje, carrego muitos traumas. Eu tenho dificuldade para me relacionar com os meninos. Eu sempre tenho medo de ser abusada de alguma forma novamente. E eu vejo que os adolescentes, muitas vezes, não respeitam as meninas. Você fala que não quer uma coisa e eles forçam a barra ultrapassando limites que a gente pede para não serem ultrapassados. As mulheres não são respeitadas na nossa sociedade”, considera.
Meninas sofrem o dobro
A constatação de Gabriela* é confirmada pela pesquisa que mostra que o número de adolescentes do sexo feminino que relataram já ter sido vítima de violência sexual é mais que o dobro do que no sexo masculino. Em Minas, 19,3% das adolescentes contaram que já sofreram violência sexual, já entre os meninos esse número cai para 8,1%.
“Esses dados expressam claramente nosso machismo estrutural. Vivemos em uma sociedade que não respeita as mulheres e que os homens acham que podem expor seus desejos e suas vontades mesmo que isso signifique ter relação sexual sem a permissão da mulher. Precisamos falar sobre essa violência sexual no ambiente familiar, na escola e em todos os âmbitos da sociedade. Temos que implementar a equidade de gênero. Além disso, as medidas de proteção são muito importantes e a punição dos suspeitos também”, considera a professora.
Ainda de acordo com a pesquisa, estima-se que, no mundo, mais de 120 milhões de mulheres e meninas sofreram algum tipo de contato sexual forçado antes de 20 anos de idade. No Brasil, foram cerca de 180 mil estupros de crianças, adolescentes e mulheres com idades entre 10 e 19 anos — entre 2017 e 2020.
Pessoas próximas são principais suspeitas
O estudo mostrou que a maioria dos adolescentes sofreu violência sexual pelos namorados, namoradas ou ficantes, amigos, pai, mãe, padrasto, madrasta ou outros familiares. O levantamento também revela que a maioria dos entrevistados contou que sofreu violência sexual quando tinha menos de 13 anos e que, a maioria dos adolescentes de 16 e 17 anos, foram vítimas de namorados ou ficantes. “Quanto mais velhos eles ficam mais predisposição a ter um relacionamento e sofrer violência sexual”, conclui Deborah.
O que é feito
Levando em conta que a escola é um dos ambientes onde, segundo especialistas, deve-se discutir violência sexual, além de ser o local onde a maioria dos casos de violência ocorre, conforme os relatos, o poder público mantem algumas ações nas instituições de ensino para tentar conscientizar as crianças e orientá-las com relação a violência sexual.
Em Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de Educação informou que monitora todas as escolas e realiza projetos pedagógicos entre alunos e professores. O objetivo é a melhoria da convivência e da segurança nas instituições. Há também a Gerência do Clima Escolar e o Plano de Convivência Escolar, além de ações de abordagem preventiva e o tratamento das situações de violência.
“O município conta ainda com o documento: ‘Escola, Lugar de Proteção – Guia de Orientações e Encaminhamentos’ que faz os devidos direcionamentos para tratar situações de violência, ato infracional, crimes, violações de direitos e outras ocorrências no ambiente escolar ou que acontecem fora da instituição e acabam interferindo no clima escolar”, complementa a pasta.
Já a Secretaria de Estado de Educação destacou que, no ínicio deste ano letivo, foi criado o Plano de Enfrentamento ao Assédio Sexual. O documento tem como intuito promover uma ação efetiva de combate, prevenção e punição dos suspeitos de assédio.
“Junto ao plano, também foi elaborada uma cartilha que traz esclarecimentos sobre as possíveis condutas que podem ser caracterizadas como assédio sexual e as sanções resultantes da prática, com informações a respeito de violência sexual e orientações de canais de denúncias que devem ser acionados, quando ocorrer o ilícito, como o Disque- Ouvidoria 162, canal de atendimento ao cidadão da Ouvidoria-Geral do Estado, dentre outros”, informou a secretaria.
Ainda com objetivo de conscientizar os estudantes da rede sobre a prática, foram criados em 2022 os Núcleos de Acolhimento Educacional (NAES), que consistem em equipes formadas por psicólogos e assistentes sociais que atuam nas 47 Superintendências Regionais de Ensino (SREs), realizando palestras sobre sexualidade, relações interpessoais e empoderamento, além de oficinas sobre bullying, a fim de orientar e prevenir a ocorrência de atos ilícitos.
A violência sexual no Brasil
A pesquisa trouxe também dados nacionais mostrando que os estados do Amapá (18,2%), Pará (17,8%), Amazonas (17,6%), Roraima (17,4%) e Distrito Federal (16,3%) foram os que mais registraram a violência sexual entre os adolescentes. Já os que tiveram menor registro foram: Alagoas, Bahia e Rio Grande do Sul (12,1% em cada), Sergipe (12,2%) e Piauí (12,8%).
O estudo também fez uma análise de dados específicos do estupro no Brasil e constatou que os estados que mais registraram o crime foram Amapá (9,7%), Amazonas (9,4%), Pará (8,6%), Roraima (8,2%) e Mato Grosso do Sul (8%). Já as menores prevalências foram registradas no Rio Grande do Sul (4,8%), Alagoas, Bahia (5,1% em cada) e Paraíba, Pernambuco, Piauí e Sergipe (5,6% em cada).
Números da violência sexual
Em Minas
156.536 adolescentes com idades entre 13 e 17 anos sofreram violência sexual em algum momento da vida. O dado representa 13,6% dos 1.151.000 de pessoas com essa faixa etária no Estado.
Meninas x Meninos
Entre as adolescentes mineiras 19,3% contaram que já sofreram violência sexual. Enquanto os meninos representam 8,1%.
*é usado para indicar nome fictício
Fonte: O Tempo.