Passados dois anos do primeiro caso de Covid-19, o Brasil já tem boa parte de sua população vacinada, mas um desafio ainda pendente: a recuperação dos pacientes com sequelas do vírus.
São principalmente casos de Covid longa — quando os sintomas permanecem por pelo menos quatro semanas — e incluem queixas como fadiga, fraqueza, falta de ar, dor e confusão mental.
De acordo com especialistas ouvidos pelo GLOBO, o país precisa de uma rede integrada de reabilitação e um protocolo nacional para que médicos e enfermeiros saibam lidar com esses casos.
Os primeiros passos começam a ser dados, mas o cenário ainda está longe de ser ideal. Não é incomum pacientes relatarem uma peregrinação no sistema de saúde público e privado em busca de ajuda para tratar os sintomas persistentes.
Tatiane Faria, de 35 anos, pegou Covid em maio de 2020 e até hoje convive com a sensação de queimação pelo corpo e cansaço extremo. Ela conta que foi em quase dez médicos ao longo desses um ano e nove meses. E todos deram a mesma resposta: não há o que se fazer. A situação levou a um quadro de ansiedade e depressão.
— Hoje estou tomando antidepressivo, é o que controla o meu desespero. Eu ficava o dia inteiro na cama, chorando, não conseguia dormir, nem trabalhar. É uma sensação de impotência — diz ela.
As fortes dores no corpo fizeram Tatiane, que é dona de um salão de cabeleireiro na zona leste de São Paulo, ficar seis meses afastada do trabalho. Mesmo hoje ela consegue ir apenas alguns dias da semana.
— Não consigo retomar a minha vida. Me vejo presa no meu próprio corpo e abandonada, pois a rede pública não dá nenhum tratamento, só remédio para passar a dor e voltar para a casa.
Diretora do Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde (OMS) para Reabilitação e presidente do Conselho Diretor do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas, Linamara Rizzo Battistella afirma que a reabilitação é o próximo desafio do Brasil na pandemia.
— É preciso dar reabilitação ajustada à necessidade de cada paciente. Caso contrário, vamos ter uma população inteira demandando cuidados permanentes e fora da condição produtiva — afirma a especialista, que é idealizadora da Rede Lucy Montoro. — O hospital salva a vida, mas é a reabilitação que devolve essa vida para a sociedade.
Entre os casos atendidos no Hospital das Clínicas, que em sua maioria são de pacientes vindos de hospitais, Linamara diz que quase todos têm tido sucesso no tratamento e cerca de 8% seguem com limitações importantes no dia a dia. Ela ressalta que apesar de a ciência não explicar muitos desses sintomas, há todo um arsenal terapêutico disponível para tratamento.
A pneumologista Patrícia Canto, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), defende que haja uma centralidade no cuidado das pessoas com sequelas da Covid, justamente para evitar peregrinações pelo sistema de saúde.
— O SUS pode dar conta, mas são necessários investimentos e organização. O ideal é que o paciente consiga ir a um centro especializado para receber todo o atendimento — disse a especialista.
Na rede privada, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz criou, em agosto do ano passado, o seu próprio Centro de Tratamento Pós-Covid após observar um número significativo de pacientes precisando de reabilitação e outros com sintomas persistentes.
— Essas pessoas acabavam passando por múltiplos especialistas para ter certeza de que estava tudo bem. Às vezes, sem direcionar para o que era mais essencial e até sobrecarregando o sistema com repetição de exames. Tudo isso por falta de um cuidado centralizado — afirma Filipe Piastrelli, coordenador do centro.
Estados como o Piauí criaram unidades específicas de reabilitação pós-covid, mas, segundo especialistas, esses cuidados podem ser feitos nos já existentes Centros Especializados em Reabilitação (CER). Atualmente, o SUS possui 268 CER espalhados de forma desigual pelas 27 unidades da federação.
O pneumologista Carlos Carvalho, diretor da UTI Respiratória do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP, afirma que o Ministério da Saúde deve fazer um diagnóstico das necessidades de atendimento em cada estado do país para, depois, avaliar a necessidade de investimentos nos CER.
Outra prioridade, diz ele, é a elaboração de um protocolo nacional para o pós-Covid. Em dezembro, Carvalho enviou à Secretária Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, Rosana Leite, uma sugestão de programa de avaliação e tratamento da síndrome pós-covid elaborada em conjunto com outros profissionais da saúde. Até agora ele disse que não teve retorno.
Em janeiro, o pneumologista teve rejeitado pela pasta o protocolo de tratamento da Covid elaborado por um grupo de estudos que ele formou a pedido do ministro Marcelo Queiroga. O protocolo contraindicava o uso do “kit Covid” ou tratamento precoce.
— Neste programa de pós-covid nós propomos montar uma rede para cuidar desses pacientes, inclusive com programa de reabilitação. É uma tentativa de estruturação para que se faça uma triagem simples e rápida para tentar reconhecer quem vai ficar com forma crônica de Covid e precisar do serviço de saúde — diz Carvalho. — É necessário diagnosticar desde já alterações graves que vão ser custosas (para o SUS), até para que haja uma intervenção precoce.
Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu sobre o documento enviado por Carvalho. Disse, em nota, que a pasta repassa anualmente recursos na ordem de R$ 608,1 milhões para CER e serviços de reabilitação habilitados em uma única modalidade.