O desastre natural que arrasa o Rio Grande do Sul desde o fim de abril, provocando mortes e prejuízos bilionários, desperta o debate sobre a necessidade de se preparar para os efeitos das mudanças climáticas, bem como realça o tamanho do impacto – principalmente na vida das pessoas. A discussão diz respeito ao que governos, empresas, instituições e sociedade civil estão fazendo para mitigar os reflexos das catástrofes. Uma sugestão apresentada pelo Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) é a criação do Marco Legal de Defesa de Consumidores Vítimas de Eventos Climáticos Extremos, para resguardar as pessoas, que além de perderem entes queridos, ainda têm que lidar com os danos financeiros.
Um levantamento da Confederação Nacional de Municípios, atualizado na quarta-feira (15/5), mostrou que o prejuízo com as chuvas no Rio Grande do Sul já chegam a R$ 9,5 bilhões. O balanço parcial – já que muitos locais continuam submersos – ainda revelou que mais da metade (4,6 bilhões) desse valor se refere ao setor habitacional, sendo mais de 106,3 mil casas danificadas ou destruídas. Diante dos estragos de residências, veículos e de outros bens, espera-se, inclusive, que o setor de seguro alcance um número recorde de pagamentos de sinistros.
Diante disso, o Idec defende que é preciso estabelecer o princípio geral de que os danos dos eventos climáticos sejam compartilhados igualmente entre todas as partes. “Normas têm que ser criadas, para que as consequências dessas tragédias não sejam assumidas unicamente pelas famílias, mas também pelo Estado e pelas empresas. Durante esse período emergencial, bancos, companhias de telefonia, de energia e de água precisam isentar as pessoas das cobranças de suas faturas e não suspender os serviços, mesmo em situação de inadimplência,” afirma o diretor de relações institucionais do Idec, Igor Britto.
O diretor ainda chama atenção para outro ponto. “Não faz sentido que as pessoas que já perderam seu patrimônio e até suas rendas, ainda continuem pagando os boletos. Financiamento de carros e de imóveis atingidos ou perdidos precisam ser quitados pelos bancos, independentemente de seguros. A omissão das grandes empresas em reduzir a temperatura, a emissão de gases poluentes, a contaminação da água e diminuição de áreas de preservação, é por si só uma justificativa para que as novas leis atribuam a elas o risco desses acontecimentos,” enfatiza.
Igor diz que a proposta de criação do marco ainda não foi apresentada formalmente ao Legislativo, “mas devido a necessidade de agilidade no tema, desde o início desta semana, estamos levando a reivindicação diretamente para algumas agências reguladoras. Além disso, estamos solicitando que a Câmara dos Deputados, o Senado e Palácio do Planalto nos informem sobre o andamento das sugestões de leis já formuladas nesse sentido, pois sabemos que existem projetos com esse mesmo viés tramitando no Congresso, desde a pandemia de Covid-19 e dos últimos desastres naturais.”
Os reflexos no agronegócio
Outros setores privados também foram muito afetados pelos temporais no Rio Grande do Sul. Segundo dados da CNM, atualizados nessa quarta-feira (15/5), a agricultura teve R$ 1,8 bilhão em prejuízos. O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo (USP), destacou que o Estado, principal produtor de arroz do Brasil, teve que paralisar a colheita do cereal porque as tempestades deixaram as lavouras submersas. Além disso, algumas estradas estão interditadas, o que dificulta o carregamento do grão. O colhimento do milho também foi suspenso. Há ainda a preocupação quanto ao plantio de soja, que o Estado é o segundo maior produtor do país. É que o excesso de umidade tende a elevar a acidez do óleo, o que pode reduzir a qualidade do subproduto.
Já a pecuária registrou perdas no valor de R$ 207,8 milhões. As pontes e estradas destruídas fazem com que muitos lotes de animais para abate não consigam ser transportados aos frigoríficos. Além disso, as pastagens estão embaixo d’água e parte do gado foi arrastada pela enxurrada. Mesmo nas regiões que não foram inundadas, os solos estão encharcados, dificultando o manejo dos rebanhos. O segmento de insumos também enfrenta dificuldades de escoar rações e outros itens essenciais para as propriedades rurais.
Para a professora na pós-graduação em agronegócio da Uninter Paula Braz, apesar de o Brasil avançar em práticas sustentáveis e tecnologias adaptativas, os eventos climáticos extremos continuam sendo uma ameaça. “Existem orientações importantes para estratégias de adaptação às alterações do clima no sistemas agropecuário, como o Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas, do Ministério do Meio Ambiente, inclusive aprovado pelo Senado nessa quarta-feira (15/5). Porém, a implantação dessas políticas enfrenta obstáculos, principalmente por falta de recursos. Além disso, o Brasil está atrasado em relação às metas de desenvolvimento sustentável estabelecidas pela Organização das Nações Unidas na agenda 2030.”
Paula destaca que existem medidas que podem ser adotadas por todas as cadeias do setor agropecuário para mitigar os danos causados pelas mudanças climáticas. “Investir em tecnologias sustentáveis que reduzam o impacto ambiental das atividades agrícolas e pecuárias, como, por exemplo, sistemas de irrigação mais eficientes, uso de energia renovável e práticas de manejo do solo que promovam a conservação. Outra ação importante é a diversificação das culturas agrícolas, que ajuda a reduzir a dependência de cultivos sensíveis às alterações do clima, incentivando a adoção dos mais resistentes ao calor, a seca e a chuva abundante. Além disso, é essencial implementar sistemas de alerta precoce para eventos climáticos extremos, além de medidas de preservação da água.”
Outro papel classificado como importante pela especialista é a adoção de medidas que promovam a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas naturais, como, por exemplo, as agroflorestas. “Isso contaria com a preservação de áreas de vegetação nativa e a proteção de habitats de espécies ameaçadas de extinção. Outro aspecto relevante é fornecer educação e capacitação para os produtores rurais sobre as práticas agrícolas e pecuárias sustentáveis, bem como sobre os impactos dessas mudanças climáticas na vida deles. Por fim, é essencial fomentar a colaboração entre diferentes partes interessadas, incluindo governos, empresas, organizações não governamentais e também a comunidade, para desenvolver soluções integradas para o enfrentamento desses desafios,” finaliza.
Desafios para a construção civil
A Organização Meteorológica Mundial (OMM), uma agência da ONU, afirmou que o El Niño e o aquecimento global provocaram um recorde de desastres na América Latina e Caribe, em 2023. Foram notificados 67 episódios de eventos meteorológicos, hidrológicos e climáticos na região. Destes, 77% estavam ligados a tempestades e enchentes. Esses temporais, como os vistos no Sul do país, causam inundações e deslizamentos, que derrubam e comprometem inúmeros prédios e imóveis. O impacto nas estruturas vai do imediato ao longo prazo. Por isso, em razão das mudanças climáticas, o setor da construção civil passou a enfrentar os desafios de garantir a integridade e a funcionalidade das edificações.
Segundo o professor do curso de Engenharia Civil do UniBH, Derival das Graças Martins, existem normas e diretrizes – como a NBR 15575 e 6118 – que tratam, dentre outras coisas, do desempenho de edificações, incluindo a estabilidade e segurança. “As regras devem ser seguidas para que a estrutura – em contato com solo ou com água – se torne mais resistente aos fenômenos climáticos. Mas é necessário que, na fase de projeto, sejam levados em consideração os esforços não previstos gerados justamente pelos desastres. Então, o engenheiro deve avaliar os riscos e calcular o que esses eventos podem gerar na construção, para assim dimensioná-la a ser mais resistente. É claro que depende também dos órgãos públicos fiscalizar para que essas normas sejam cumpridas devidamente,” explica.
Fonte: O tEMPO.