Da janela lateral do quarto casa de seis cômodos, erguida na Colônia Santa Isabel, em Betim, na Grande BH, Maurício Simões ainda não vê o horizonte. Invadido há 12 dias pelas enchentes que atingiram Minas neste início de janeiro e deixaram ao menos 9,5 mil desalojados e desabrigados na cidade, o imóvel permanece úmido e coberto de lama.
“Não é por falta de faxina. Há mais de uma semana, tudo o que a gente faz aqui é limpar, mas parece que não adianta. Quanto mais a gente limpa, mais o barro gruda”, diz o motorista de 43 anos, com a voz embargada e expressão de desalento.
Devoto de Nossa Senhora Aparecida, ele aponta para a imagem da santa, posicionada na parede de seu alpendre, local onde ela permaneceu fixada a despeito da força das águas. “Meu amparo vem dela, que nunca me abandona. Dela e da boa vontade dos meus vizinhos. Não fosse isso, eu estaria ainda mais perdido”, desabafa o betinense.
A situação de Maurício é semelhante à de 56,3 mil pessoas atingidas pelas chuvas intensas em Minas Gerais nas primeiras semanas de janeiro, segundo o último boletim da Defesa Civil Estadual. Quinze dias após o início dos temporais, famílias inteiras tentam achar o caminho do recomeço em meio a um horizonte turvo, com poucas perspectivas e muito desamparo do poder público. Restam a fé e a solidariedade mútua.
“A essa altura da minha vida, estou tendo que recomeçar do zero. Perdi tudo. Mas ninguém perdeu a vida, né? Posso comemorar que, ao menos isso, a enxurrada não levou”, comenta Maurício, que mora há 10 anos na Colônia Santa Isabel com dois filhos e a esposa.
Ele diz que, desde que as águas baixaram e ele pôde retornar ao imóvel, as faxinas são diárias. O barro, contudo, ainda tinge todas as paredes da casa, forma poças na louça nas pias dos banheiros e da cozinha, cobre toda a grama do quintal, e forma crostas nas cortinas e nas janelas, bloqueando passagem de luz. Os cômodos exalam um cheiro pútrido. “A cada esfregada, sinto que estamos enxugando gelo”, diz o homem, emocionado.
Lama por todos os lados
A julgar pelo aspecto das ruas do bairro, o ingrato trabalho de limpeza deve perdurar por um bom tempo. Ainda há tratores e escavadeiras trabalhando em toda a região. Segundo o diretor de Serviços Ambientais da Prefeitura de Betim, Ronie Von Fonseca, as máquinas continuarão operando, no mínimo, até quarta-feira (26/1).
Desde o dia 12, o gestor calcula que, só nas imediações da Colônia Santa Isabel, os operadores retiram, por dia, cerca de 1,8 mil toneladas de entulho e lama oriunda do Rio Paraopeba, que corta a localidade. Com as chuvas, o curso d’água subiu mais de sete metros, trazendo para dentro das residências parte do imenso volume de rejeitos que carrega desde o rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho.
“Estou dormindo, comendo e tomando banho na casa de amigos. Chega de manhã cedo, eu venho para cá tentar arrumar minhas coisas. Mas a gente chega aqui e não sabe por onde começar, tamanha a bagunça. As vezes, nos sentamos no sofá, totalmente sem rumo, totalmente perdidos. Precisamos de um norte, de uma luz, não só cestas básicas. As autoridades têm que se juntar, chamar as mineradoras, e pensar numa solução para esse problema – o das enchentes e o desse lamaçal todo”, pede Maurício.
A poucos metros da casa dele, Nayara Oliveira Chaves, de 24, corre atrás dos filhos, Ravi e Castiel, de 1 e 3 anos, na varanda de sua residência. Ela tenta evitar que as crianças comam lama. Totalmente desgastadas e sujas, duas vassouras encostadas perto do portão de entrada denunciam o esforço de higiene da jovem nos últimos 15 dias. O imóvel no entanto, ainda apresenta uma grossa camada de barro, suficiente para cobrir os pés de quem entra.
“Tem muita gente doente”
Por volta das 11h de quinta-feira, Nayara aguardava o retorno da mãe, com quem mora, para fazer o almoço. Segundo ela, a idosa havia ido à pequena mercearia da família, que também foi inundada, para tentar salvar alguns produtos do estoque, além de limpar o estabelecimento. “Nossa renda vem principalmente da mercearia. Sem ela, não sei como vamos fazer”. A saúde é outra preocupação da dona de casa que, após o contato direto com a água da enchente, passou a apresentar feridas e caroços pelo corpo.
“E tem é muita gente doente, viu? Eu mesmo adoeci. Tive diarreia, dores pelo corpo, febre, muita dor de cabeça. Fiquei dois dias de cama. Uma virose brava”, diz o brigadista voluntário Adivildete Alves, que acompanhou a equipe do Estado de Minas em todo o trajeto pela colônia Santa Isabel. Ele foi chamado pela prefeitura para auxiliar no trabalho de limpeza da região.
“Nas ruas, ainda temos de 30 e 40 centímetros de barro para tirar. Nas casas, a lama chegou a atingir dois metros de altura. Estou aqui há 30 anos, já acompanhei muitas enchentes. O Paraopeba já ficou mais cheio, mas é a primeira vez que ele transborda e deixa tudo tão enlameado. Antes, com quatro dias, a gente limpava tudo. Já tem mais de uma semana que estamos aqui com maquinário pesado e ainda não acabamos”, relata o brigadista.
Atoleiro paralisa comércio
A 27,5 quilômetros de Betim, outra cidade cortada pelo Rio Paraopeba tenta se recuperar dos estragos causados pelas inundações. Após mais de uma semana de estiagem, Brumadinho, onde a Defesa Civil contabiliza 1.560 desalojados e 141 desabrigados, ainda tem ruas tomadas pelo lamaçal. No Bairro Campo do Rio, um dos mais afetados pelas chuvas, boa parte das lojas estava fechada na quinta-feira, em pleno horário comercial. Na porta dos estabelecimentos, comerciantes e funcionários manuseavam baldes, mangueiras, rodos e pás numa tentativa de, literalmente, sair do atoleiro.
É o caso de uma loja de móveis situada na Rua Padre Eustáquio, paralela ao Rio Paraopeba, onde os empregados jogavam todo o estoque de guarda-roupas e estantes no lixo. “Os móveis são feitos de MDF (chapa de madeira de baixa densidade). Esse material, quando molhado, fica todo estufado, não tem como recuperar. Estamos abrindo as caixas das peças apenas para retirar as ferragens. Não que a gente consiga vender isso, mas ao podemos usar como material de manutenção”, conta o montador João Lucas Rodrigues.
Chuva em Sabará: “É desesperador você perder tudo, reconstruir e perder tudo de novo”
O funcionário estima que o negócio já acumula prejuízo superior a R$ 400 mil. “A água do rio chegou ao teto do depósito em menos de uma hora. Tentamos salvar os móveis, mas não conseguimos. Chegou um momento em que tivemos que correr para o segundo andar, senão a enchente nos carregaria também”, relembra.
No Bairro Cohab, localidade inundada de Brumadinho, os vizinhos Jurani Rodrigues, de 60, e Antônio Feliciano, de 39, conversam com ar de desânimo sentados no meio-fio. Ambos perderam praticamente tudo o que tinham nas últimas duas semanas. “Estamos tentando limpar a casa há quatro dias. Lavei muita roupa, mas tem muita coisa ainda para lavar. Perdi tudo, só tenho fogão e geladeira porque recebi doações esses dias. Agora é trabalhar e seguir em frente”, afirma o operador.
“A vida inteira enfrentamos enchentes”
Ele diz que mora no trecho alagado há 20 anos. “A vida inteira enfrentamos enchentes. Quando alaga, a gente sai, procura outro lugar, mas acaba voltando. Os aluguéis em outros cantos da cidade são muito caros. Aqui, nós pagamos mais barato. Fora daqui, o pessoal cobra R$ 700, R$ 800. Para quem ganha um salário mínimo, não dá. Em Brumadinho é assim: pobre fica cá embaixo e rico fica lá em cima”, revolta-se o operário.
O tom de Jurani é mais conformado, apesar das perdas recentes que ela sofreu. Há pouco mais de três anos, ela realizou o sonho da casa própria ao adquirir seu imóvel na Rua José da Silva Moreira. O local, agora, está danificado e precisa de reformas, despesa que ela diz não ter como custear. “Não tem como. Minha prioridade é pagar a prestação da casa. São R$ 1.271 por mês. Comprei o imóvel por R$ 80 mil direto com o proprietário, a quem eu vou pagando mensalmente. Ele dividiu o valor para mim em quatro anos. Falta um. Nem a escritura eu recebi ainda”, lamenta a cuidadora.
Ela diz que, nos últimos três anos, investiu cerca de R$ 30 mil na moradia, que, agora, apresenta vazamentos, problemas na rede elétrica, mofo, portas destruídas e quintal coberto de lama. “Minha primeira reação foi ficar anestesiada. Pensei: ‘Ah, agora eu compro tudo novo. Vou fazer o quê?’. Mas não posso, né? E, mesmo que pudesse, aqui, não se pode ter nada, a enchente carrega tudo. Do jeito que eu comprei, vou ter que vender. Mas quem é que vai comprar?”, diz a moradora.
“Não tenho ajuda de ninguém”
Nas cidades às margens do Rio das Velhas, que chegou a se elevar em oito metros com as chuvas intensas, invadindo centenas de residências, o cenário ainda é de guerra. Que o diga Sabará, onde o último boletim da Defesa Civil contabilizou ao menos 70 famílias desalojadas, se abrigando nas casas de vizinhos, amigos ou parentes. Outros 100 habitantes estão abrigados em 11 pontos do município e locais parceiros, como escolas, salões comunitários e igrejas.
Moradora do distrito de Honório Bicalho, Adriana Gonçalves Alves, de 45 anos, ainda não pôde voltar para casa. “Até hoje eu estou dormindo na casa de parentes porque a água jogou as portas e os vidros da janela no chão. Aí não tem como eu voltar. Eu moro de aluguel, agora vou correr atrás para ver com o proprietário pode fazer pela casa, para dar uma melhorada” diz a salgadeira, que morava na residência alagada com três filhos e uma neta no distrito de Nova Lima.
Ela conta que perdeu todos os seus móveis, roupas e eletrodomésticos nas enchentes. “Quando eu comecei a colocar minhas coisas para cima, a água já estava na minha cintura. Consegui colocar algumas coisas dentro do guarda-roupa. Mas ele ficou três dias imerso na água. Com o tempo, acabou arriando e jogou tudo para a lama. Ainda estou contando os estragos para ver o que posso fazer”, afirma a sabarense, que se queixa de falta de amparo do poder público: “Eu ganho um salário mínimo. Pago aluguel, sustento a minha casa e não tenho ajuda de ninguém”.
Trabalho pesado na limpeza
Em Raposos, também castigada pela cheia do Rio das Velhas, duas semanas após as inundações, a limpeza das ruas ainda não terminou. A prefeitura estima que, desde 12 de janeiro, 30 mil toneladas de lama foram retiradas de ruas, casas e lojas do município. Cinco mil pessoas continuam desalojadas e 3 mil perderam as casas na localidade.
O empresário Lucas Alexandre de Jesus, de 32, mantém um açougue há seis anos na cidade. O estabelecimento ficou alagado, causando prejuízos que, segundo o comerciante, chegam a R$ 100 mil. “Perdi 8 freezers, câmara fria, moto, maquinário. Tudo o que estava lá dentro da loja foi perdido. Agora, com a limpeza, vou ver o que eu consigo recuperar. Acabou a minha vida. Estou tentando correr atrás de novo”, lamenta o empreendedor.