“Fui uma criança e uma adolescente que ficava em casa. Era taxada como esquisita porque eu não tinha essa facilidade tão grande para socializar. Sempre preferi meu videogame a sair para conversar com pessoas que eu não me sentia confortável”, lembra a terapeuta e consultora de autoconhecimento Isis Paranhos, que conta que acabou crescendo tentando mudar e lutar contra seus próprios limites. A compreensão sobre seu comportamento, muitas vezes visto como diferente do “normal”, só veio quando adulta, após receber diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). “A minha vida melhorou absurdamente, mas foi um baita de um desafio na época. E foi um diagnóstico bem tardio, eu tinha 32 anos”, conta.
Mas identificar o TEA não foi das tarefas mais fáceis. Aliás, a hipótese de que poderia estar no espectro autista veio de uma percepção da própria terapeuta. “Comecei a entender que me encaixava em várias características quando o irmão de uma colega de colégio foi diagnosticado. Então fui buscar informações sobre isso e acabei indo parar no TikTok para descobrir uma estrangeira autista que compartilhava vários entendimentos sobre a sua vida e, depois disso, cheguei também em uma brasileira. A partir disso, fui tendo mais certeza de que estar no espectro não era uma possibilidade tão distante”, rememora.
A percepção de Isis, porém, esbarrou no preconceito e no despreparo dos médicos que havia procurado. “O primeiro deles, um psiquiatra, me chamou de histérica. Disse que era coisa da minha cabeça, que não tinha motivo para estar naquele desespero todo, que me daria um antidepressivo e isso se resolveria”, conta.
A segunda experiência, com um neurologista, seguiu um padrão parecido, mas ainda mais desrespeitoso. “Ele disse que era bobagem ir atrás disso, que quem tinha que se preocupar com o TEA era a mãe de um menino de 4 anos, que não sabe se ele vai se desenvolver ou não”, lembra. A situação tornou-se ainda pior quando virou assédio. “Ele disse para eu parar de ficar inventando problemas, porque era uma jovem tão bonita, educada e inteligente. Que não tinha motivo para ‘manchar’ a minha reputação. Eu insisti para que ele me desse um pedido de exame e ele me deu, mas junto do pedido ele me passou o número do seu telefone pessoal. Foi tudo tão descarado que até eu, que tenho uma dificuldade de perceber essas situações, consegui notar”, diz Isis, referindo-se à dificuldade característica de pessoas no espectro autista de identificarem sinais sutis na comunicação e entender pistas sociais – fator que afeta, inclusive, nos relacionamentos amorosos e em situações de flerte ou paquera.
As experiências negativas, porém, não impediram que Isis buscasse por uma terceira opinião. Foi assim que ela passou a acompanhar, nas redes sociais, o caso de mais uma jovem que havia recebido o diagnóstico recentemente. “Vi quando ela falou da psicanalista que a atendia e a ajudava a lidar com algumas questões e fui atrás dessa profissional. Foi ela quem me atendeu durante uns oito meses, nesse processo que é chegar ao diagnóstico e confirmá-lo”.
A realidade vivida pela terapeuta – num processo que precisou partir de uma busca ativa e insistente dela – escancara um problema: a dificuldade no diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista em mulheres. Por trás disso, estão inúmeros fatores, que vão desde a maior prevalência da doença em homens aos impactos do machismo estrutural na sociedade. “Até 2020, a proporção entre as crianças com autismo era de que a cada menina diagnosticada, quatro meninos tinham o mesmo diagnóstico. Alguns estudos também apontam maior predisposição aos homens devido a fatores genéticos e biológicos. Porém, outros estudos também apontam que as meninas são subdiagnosticadas por conta da maior maior adaptabilidade social. O machismo estrutural, que exige das mulheres, desde a infância, maior sociabilidade, e culmina num treinamento comportamental e emocional desde cedo também é um fator”, explica João Gabriel Grabe, psicólogo fenomenológico-existencial e autista. “É diferente do que acontece com os meninos, que têm comportamentos, principalmente de agressividade de conflitos, mais tolerados”, acrescenta.
O masking ou a “camuflagem social” – termos que tratam da capacidade de uma pessoa com autismo se adaptar ao ambiente social, suprimindo traços autistas naturais para se encaixar nos padrões sociais considerados “normais” – é outra questão que também pode tornar o autismo menos perceptível, principalmente em níveis mais leves. Vale ressaltar que essa estratégia, mais comum em mulheres, envolve um gasto de energia excessivo, já que é preciso assimilar e aprender comportamentos considerados “típicos” para compensar e camuflar características relacionadas ao TEA – o que realmente lega pessoas autistas a se sentirem totalmente esgotadas durante ou logo após se exporem a situações sociais.
A valorização social de mulheres que tenham uma personalidade mais contida e tímida também é outro fator que pode corroborar com a falta de diagnóstico, principalmente porque comportamentos mais fechados podem ser estimulados como sendo posturas adequadas. Diante disso, o que poderia ser considerado como um problema ou uma dificuldade na socialização, passa a ser entendido como um comportamento louvável. “Muita gente diz que não é necessário que a mulher seja muito expansiva e que se ela é mais ‘na dela’, ela é apenas tímida. Isso é uma coisa bem vista na sociedade”, destaca a terapeuta Isis Paranhos. “Discursos como ‘é bom a menina ser mais quieta’, ‘ficar mais no seu cantinho’ sempre me influenciaram”, diz.
A compreensão da própria família diante do comportamento das crianças também pode influenciar a demora na descoberta do TEA. É isso o que explica João Gabriel. “Quando pensamos no diagnóstico tardio, voltamos nossos olhares para atitudes atuais, mas que acontecem desde a infância e são tidos pela família como ‘normais’. O ser tímido, não gostar de contato físico, não olhar nos olhos, problemas com determinados alimentos ou texturas, o se isolar, brincar completamente sozinho, dentre vários outros comportamentos, podem ser compreendidos como naturais ou como uma ‘personalidade forte’”, exemplifica. Quando há bom desenvolvimento escolar e boa funcionalidade social, o sofrimento também pode passar despercebido ou ser silenciado diante de um aparente “sucesso”.
Quais são os principais sinais do Transtorno do Espectro Autista?
Conforme a definição da Biblioteca Virtual em Saúde, do Governo Federal, o transtorno do espectro autista (TEA) é um problema no desenvolvimento neurológico que prejudica a organização de pensamentos, sentimentos e emoções.
Diante dessa dificuldade, os sinais podem acabar variando de intensidade em cada pessoa, podendo existir alguns facilmente observáveis, como a presença de movimentos estereotipados – que incluem comportamentos repetitivos como balançar as mãos para cima, movimentar-se para frente e para trás ou de um lado para o outro por algum tempo, entre outros. “Porém, as principais características segundo o DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), são os déficits na comunicação e nas interações sociais, os padrões restritos e repetitivos de comportamento em atividades ou interesses – como querer sempre comer a mesma comida, seguir o mesmo caminho, ou brincar com um tipo de brinquedo. Eles estão presentes desde as fases iniciais do desenvolvimento da criança, causando prejuízo no âmbito social, profissional ou pessoal na adolescência e na fase adulta”, explica o psicólogo João Gabriel Grabe.
O profissional acrescenta ainda que outras características também podem ser observadas durante a fase de desenvolvimento, como a ecolalia, que é a repetição de palavras, sons ou frases de forma contínua; o hiperfoco em assuntos específicos por longo ou curto tempo; a rigidez em relação a mudanças (sejam elas de rotina, ambientes, seja em relação a alimentação); a dificuldade em se relacionar ou manter relações por muito tempo, e as restrições alimentares por conta de texturas, sabores ou cheiros.
Ainda existem outros fatores e sinais característicos do TEA, que vão variar de acordo com o nível do transtorno e com cada indivíduo. Por isso, o especialista orienta que em caso de dúvida, o ideal é procurar um profissional da psicologia para construir a hipótese diagnóstica, que irá, a partir do contexto clínico, construir um modo de atuar em relação ao sofrimento e as demandas do paciente, principalmente em relação ao diagnóstico tardio. “No diagnóstico infantil, é importante recorrer não só ao psicólogo, mas também à escola (professores e responsáveis pela sala – para saber sobre o dia-a-dia da criança), assim como médicos e outros profissionais que podem atuar e contribuir também no acompanhamento e desenvolvimento da criança”.
Fonte: O Tempo.