Mesmo diante da alta dos casos de Covid entre crianças e da maior exposição aos riscos oferecida pela volta às aulas, alguns municípios brasileiros têm criado obstáculos para a vacinação infantil. A exigência de termos de consentimento dos pais, praticada em algumas cidades e sem precedentes no programa brasileiro de imunização, é vista como desnecessária e danosa por especialistas.
Secretarias municipais de Saúde como as de Lagoa Santa (MG) e Japeri (RJ) exigem algum termo de responsabilidade dos pais, mesmo eles estando presentes no momento da imunização. Além disso, o próprio Ministério da Saúde publicou recomendação para que as famílias procurem médicos antes da encaminhar os filhos à vacinação.
“O problema é que isso gera dúvida sobre a vacinação em alguns pais. Eles ficam receosos, acabam hesitando, não preenchem e não vacinam. Além disso, atrasa a fila, burocratiza o processo. E uma das maneiras de dificultar alguma coisa é, justamente, criar dúvidas e burocracias”, afirma o infectologista e pediatra Filipe da Veiga.
No site de Lagoa Santa, entre os documentos solicitados, a informação é que “é necessário que o responsável legal assine o termo de consentimento para a imunização disponível nas salas de vacinação”. Procurada, a Secretaria de Saúde da cidade informou que o termo de autorização é solicitado quando o responsável está ausente no momento da vacinação e, para os presentes, “é necessário somente assinar a concordância com a vacinação da criança”.
Em Salvador, era exigida a assinatura de um “formulário com ‘termo de assentimento dos pais’”, mas a exigência foi suspensa nesta segunda-feira, após debate com o Ministério Público da Bahia (MP-BA). A capital baiana continua a exigir o termo assinado “na hipótese de vacinação desacompanhada do pai ou mãe”, com cópias dos documentos do responsável pela assinatura.
Medida inédita
Mesmo a exigência de uma autorização quando a criança for levada por uma pessoa que não é seu responsável legal é alvo de críticas. A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações (PNI) de 2011 a 2019, afirma que essa exigência nunca foi feita para outras vacinas dadas a essa faixa etária.
“[A exigência de consentimento por escrito] é descabida, a própria nota do ministério voltou atrás e hoje diz que só há exigência se for levada por outras pessoas e, mesmo assim, isso nunca aconteceu e não deveria ser cobrado. Quantas vezes a gente viu vizinhos, um parente aposentado, madrinha, babá, levarem as crianças para serem vacinadas? Sempre foi assim. Se alguém está levando é porque o pai, que pode estar trabalhando, autorizou. É só para dificultar e retardar o processo”, avalia Domingues.
Apesar de a maioria dos participantes de uma consulta pública realizada para a sociedade civil no fim do ano passado ter se posicionado de forma contrária à exigência de prescrição médica para imunização de crianças, o Ministério da Saúde continua sugerindo a necessidade de uma orientação médica.
Em notícia do próprio órgão, publicada em 26 de janeiro, o texto afirma que “a orientação da pasta é que os pais ou responsáveis por suas crianças procurem a recomendação de um médico antes da imunização”.
A pasta divulgou uma nota técnica no último dia 20 com argumentos jurídicos para defender que a imunização de crianças não é obrigatória. Uma das justificativas é que a vacina contra a Covid foi incluída no Plano Nacional de Operacionalização (PNO) do combate à doença, e não no Programa Nacional de Imunizações (PNI), condutor das campanhas no país.
Pais em dúvida
Para Carla Domingues, o ministério segue lançando mensagens “conflitantes”, colocando dúvidas nos pais:
“Sabemos que não tem pediatra para atender 20 milhões de crianças num curto espaço de tempo. É uma medida descabida. Uma criança que tem problema de saúde, um tratamento de câncer, uma doença rara, deve passar por médico, como sempre foi orientado. Mas uma criança sadia vai no médico e ele vai olhar e dizer o quê? O ministério está delegando sua responsabilidade para o médico. Como vai ter elevada cobertura vacinal desse jeito?”
Apesar dos entraves, Filipe da Veiga considera que a vacinação infantil vai engrenar. Segundo ele, a hesitação parece menor.
Para o pediatra, os números devem subir mais à frente, quando acabar o escalonamento por idade adotado em algumas cidades e terminarem as férias escolares. Há ainda o grande contingente de crianças que se infectou no início do ano e precisa respeitar o intervalo de 30 dias antes de receber a aplicação.
Fonte: O Globo