O Brasil registra, em média, 580 mil casos de câncer diagnosticados em pessoas por ano. Desse total, segundo a Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), cerca de 5 mil morrem por não conseguirem se submeter a um tratamento, e em 2019, pelo menos 130 mil não conseguiram receber atendimento. A previsão é de que os dados, tanto de pessoas diagnosticadas quanto de óbitos causados pelo câncer, se agravem caso não sejam tomadas medidas urgentes.
A previsão está no estudo “RT-2030”, elaborado pela Sociedade Brasileira de Radioterapia e pela Fundação Dom Cabral, obtido com exclusividade pelo Núcleo de Jornalismo Investigativo da RecordTV. As duas entidades apontam que o câncer, que hoje é a segunda maior causa de mortalidade no Brasil, deve se tornar a primeira até o ano de 2030.
Até lá, a previsão é de que o número de pessoas diagnosticadas por ano com a doença aumente para cerca de 640 mil e pelo menos 333 mil (52%) devem ser indicadas a passar por radioterapia. É aí que está o grande gargalo do combate ao câncer no Brasil na atualidade.
Paciente passa por exame em hospital
O Brasil tem, hoje, 409 equipamentos de radioterapia. Desse total, de acordo com o estudo, 111 estão obsoletos. Normalmente, a vida útil desse tipo de aparelho é estimada em cerca de 15 anos. No entanto, ao menos 29 dos equipamentos têm mais de 30 anos de operação.
O estudo estima que, até 2030, 52% dos aparelhos que o país abriga atualmente estarão fora de uso, enquanto deverá ter um aumento, na mesma proporção, de casos de câncer em idosos no Brasil. Para que o problema seja corrigido a tempo, os pesquisadores indicam que seria necessário adquirir 530 novos equipamentos de radiografia, chamados de “aceleradores lineares”.
Virgínia Izabel Oliveira, da Fundação Dom Cabral, estima que o valor dessa compra chegaria a US$ 670 milhões.
Para Marcus Castilho, presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia, o problema é de planejamento. Ele prevê que a próxima crise da saúde no Brasil, se não houver adequação das medidas recomendadas, será a da radioterapia. “Não adianta comprar dezenas de equipamentos se a estrutura para recebê-los não estiver pronta”, diz.
“As aquisições têm que seguir um cronograma em função da vita útil dos equipamentos, que é de 15 anos em média, e necessidades da população. O estudo oferece esse planejamento”, complementou Castilho.
Segundo Arthur Accioly Rosa, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia, entre 2017 e 2020, “com o envelhecimento da população, vai haver uma transição epidemiológica. Em 2035, o câncer alcançará a primeira causa de mortalidade [no Brasil]. Portanto, estruturar o tratamento do câncer até lá é fundamental”.
Trecho de estudo que aponta risco de “apagão” no tratamento do câncer
Tratamento rápido é essencial
Paulo Ariel Talon é um exemplo do quanto um tratamento rápido é capaz de salvar uma vida. Ele descobriu um tumor na cabeça em 2013. Na época, conseguiu atendimento rápido. E por isso acredita que conseguiu se recuperar. “Não pode esperar a lesão: [O tumor] vai aumentando aos pouquinhos, [se] não faz rádio, faz cirurgia e é mais forte”, afirma. Mas nem todos os diagnosticados conseguem se tratar de maneira rápida.
O autônomo Daniel Alves, de 40 anos, enfrentou duas lutas após ser diagnosticado com câncer: a primeira, contra a própria doença, a segunda, na Justiça. Ele descobriu que tinha um tumor na nasofaringe no fim do ano passado. O câncer já havia se espalhado pelo pescoço, mas ele precisou esperar três meses para a primeira consulta médica. A segunda demorou mais 90 dias. Foi quando precisou buscar a Justiça pela primeira vez.
Quando finalmente conseguiu a consulta, o médico recomendou 33 sessões de radioterapia, que deveriam começar o mais rápido possível. Uma segunda liminar foi necessária. Com a liminar a seu favor, Daniel precisou enfrentar mais um desafio: o da distância. Morador de Praia Grande, no litoral paulista, tinha que se dirigir para a capital para se tratar. Na cidade onde ele mora, não há equipamento para fazer radioterapia.
Problema antigo
No ano de 2012, o governo federal criou o plano de expansão de radioterapia no SUS, com a aquisição de 80 equipamentos – posteriormente aumentados para 100. No entanto, passados nove anos, apenas 29 deles foram licenciados. De acordo com o Oncoguia, instituto que faz o acompanhamento do plano, até 2016, foi entregue apenas um aparelho. Outros oito foram entregues até 2018.
Em 2019, o Ministério da Saúde elaborou um censo de radioterapia que apontava um déficit de 45% a 50% de equipamentos. À época, 122 equipamentos já eram tidos como obsoletos. No ano seguinte, o ministério parou de emitir relatórios sobre avanços do programa.
A presidente da ONG Oncoguia, Luciana Holtz Barros, pede que o Ministério da Saúde retome a divulgação de informações sobre os avanços do plano de expansão de radioterapia. O órgão recentemente deixou de publicar os dados pela internet.
A previsão, de acordo com o estudo, é de que, até o ano que vem, mais 40 equipamentos de radioterapia ficarão obsoletos. A pesquisa também indica que, até 2022, 45% das instalações no Brasil ficarão sem assistência técnica.
Lei dos 30 e dos 60 dias
Um dos pilares para que o atendimento a pacientes com câncer seja eficiente é a velocidade com que se inicia o tratamento. A lei brasileira determina que, perante a suspeita de câncer, os exames para diagnóstico devem ser realizados em até 30 dias. Após o diagnóstico, o tratamento deve ser iniciado em até 60 dias.
No entanto, uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou, em 2015, que apenas 15,9% dos pacientes do SUS com indicação de radioterapia conseguem iniciar o tratamento dentro do prazo. A maioria aguarda, em média, 113 dias – quase quatro meses antes da primeira sessão.
Para que a lei seja cumprida, o estudo aponta que, além de novos equipamentos, seria necessário aumentar a quantidade de profissionais envolvidos no tratamento. Atualmente, são 646 médicos. Até 2030, seria necessário treinar outros 500, além de mais de 3,1 mil profissionais de outras áreas da saúde.
Posicionamento do Ministério da Saúde
Por meio de nota, o Ministério da Saúde afirmou que existem 155 serviços de radioterapia no SUS, com 298 equipamentos em funcionamento. Além disso, de acordo com o ministério, de 80 equipamentos novos contemplados no plano de expansão da radioterapia no SUS, 48 estão em funcionamento, dos quais 11 aguardam autorização para operar.
Ainda segundo o ministério, 54,5% dos pacientes que necessitam de radioterapia são tratados em até 30 dias. Outros 30% demoram mais de três meses para receber o tratamento. E 15,5% do total são tratados em até dois meses. Ao todo, cerca de 137 mil pessoas foram irradiadas pelo SUS – o ministério não informou o período que contempla o dado.
Quanto à divulgação de dados sobre o andamento do plano de expansão do SUS, o ministério informou que agora as informações ficam disponíveis num novo portal do Persus: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/plano-de-expansao-da-radioterapia-no-sus.
O ministério informou, também, que, desde 2013, foram investidos mais de R$ 326 milhões em equipamentos e obras de radioterapia.