O Ministério Público do Trabalho notificou a escola responsável por aplicar um questionário com questões políticas, religiosas e ideológicas a professores durante processo seletivo para a contratação de docentes em Belo Horizonte. A denúncia, revelada pelo BHAZ no início do mês, está sendo apurada e, agora, o colégio terá cerca de 50 dias para esclarecer a prática, que é considerada inconstitucional. Uma ação civil pública não é descartada pelo MPT.
De acordo com a Procuradoria do Trabalho, foi instaurado um procedimento preparatório de inquérito civil. Instaurado o procedimento, a escola foi intimada para apresentar documentos e manifestação sobre as denúncias. Uma audiência será marcada para que a empresa busque se adequar às normas vigentes, inclusive, com a possibilidade de assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC).
Hudson Machado Guimarães, procurador do Trabalho, explica que, tanto a Constituição Federal quanto a legislação infra-constitucional e até mesmo alguns tratados internacionais como, por exemplo, a convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) não permitem discriminação em um processo seletivo. “Não é correto a empresa fazer distinções, baseadas em convicções políticas, religiosas, em opções, se [a pessoa] é de esquerda ou de direita ou de centro”, esclarece.
De acordo com Guimarães, o que deve ser feito em um processo seletivo de professores é verificar se eles sabem o conteúdo da matéria que vão disciplinar. “Nenhum professor, candidato, pode ser eliminado de um processo seletivo para uma vaga na escola baseando na posição política ou religiosa, ou seja, não pode haver cárater de discriminação no processo”, defende.
Entenda o caso
Professores que participam de um processo seletivo para serem contratados por um colégio da rede privada, localizado na Pampulha, em Belo Horizonte, denunciam que os candidatos precisam responder a um questionário com perguntas sobre seus posicionamentos políticos, religiosos e ideológicos. A prática, segundo especialistas da educação e do direito trabalhista, ouvidos pelo BHAZ, é ‘grave’ e fere a Constituição.
O colégio diz que “desconhece o fato”. O BHAZ teve acesso aos documentos e checou a veracidade. Neles, os professores são questionados com qual espectro político se identificam. As opções que devem ser assinaladas são esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita. Também há uma pergunta sobre a religião do docente.
Em outro campo do questionário, os candidatos precisam se posicionar a favor ou contra em relação a uma série de assuntos. Os temas dizem respeito à legalização do aborto, ao aumento de impostos para os ricos, à descriminalização do uso de drogas, à regulamentação de sites que disseminam fake-news, à soltura de presos não-violentos para diminuir a superlotação, à privatização de serviços hospitalares e penitenciários, ao desarmamento, ao aumento de impostos para empresas, à transição de gênero para menores de 18 anos, a testes “anti-drogas” com resultado negativo para que pessoas recebam benefícios sociais e, ainda, ao ensino do feminismo para as meninas.
O colégio recebe crianças e adolescentes do berçário ao ensino médio e se apresenta como um centro de educação que “desenvolve virtudes cristãs”.
No entanto, mesmo instituições privadas, ligadas a denominações religiosas, precisam seguir a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), uma referência obrigatória para todas as escolas. Desde 1996, ela é prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional da Educação. Na prática, a BNCC determina que todos os estudantes do Brasil devem aprender as mesmas habilidades e competências ao longo da sua vida escolar.
Marcus Aurélio Taborda, professor da Faculdade de Educação da UFMG, explica que toda escola precisa respeitar a BNCC, que normatiza o que uma escola pode e deve ensinar. A Base estabelece, inclusive, que questões morais e éticas devem ser trabalhadas sob o ponto de vista do direito humano. “O lugar das mulheres na sociedade, o lugar dos povos afrodescendentes na sociedade, tudo isso passou a fazer parte das escolas, segundo a norma”, explica. Para ele, um processo para selecionar professores indagar sobre essas questões políticas, religiosas e ideológicas é algo ‘arbitrário’.
Denúncias
Um professor, com formação em Língua Portuguesa, que atua em outras escolas de BH e que, por isso, não quis se identificar, conta ao BHAZ que o questionário é aplicado desde 2022. Segundo ele, por duas vezes tentou lecionar na escola, mas não foi aceito. Ele acredita que as respostas dadas impediram a sua contratação.
“Quando cheguei lá, achei que era um questionário de habilidades da minha área. Mas eram questões de caráter pessoal. Um ano depois, achei que, por terem mudado a coordenação, não exista mais, mas ele continua sendo aplicado”, conta. “Eu não menti. Eu fui fiel às minhas opiniões, aos meus preceitos. Mas o meu posicionamento, diante do que eles queriam ali, mostrou que eu não estava apto e isso prejudicou o meu processo seletivo”, desabafa.
Para o professor, essa é uma forma de censura e silenciamento e o sentimento é de ‘revolta’. “A gente se prepara dentro de uma universidade, estuda anos, mestrado, doutorado, para estar habilitado para um ensino específico, e quando a gente tem a oportunidade de ser inserido nesse mercado de trabalho, a gente é visto, não por conta do nosso esforço, dos estudos, mas por opiniões, por valores, por discursos que, por ora, não deveriam ser inseridos dentro de sala de aula”, diz.
Outra professora, que também não quis se identificar, conta que, recentemente, passou pelo processo seletivo no mesmo colégio. “Foi a primeira etapa, uma espécie de filtragem, e fiquei chateada [de não ter sido selecionada]. Por ser sincera, fui prejudicada, não fui reconhecida, mesmo com vinte anos de profissão”, conta.
Os dois professores, que já atuaram em colégios católicos, contam que nunca passaram por isso. “Eu já trabalhei em diversas escolas particulares e públicas, escolas particulares que são católicas, por exemplo, e em nenhum momento eu tive um processo seletivo como esse, no qual a prioridade não é o conhecimento”, diz o professor.
Ele acredita que a aplicação desse questionário é uma forma de censurar e silenciar determinados profissionais. “Eu, como professor, vejo como uma forma preocupante de educar”.
Já a professora, formada em pedagogia, é espírita e se viu constrangida. “Em outras [escolas católicas] não precisei omitir minha religião. Eu sempre conversava com as freiras, a gente trocava opinião, conhecimento, isso era algo bacana, a gente tem o direito de ser livre”, diz.
O BHAZ apurou, com fontes ligadas a outras instituições religiosas, que a aplicação de qualquer questionário com essas questões não é uma prática comum e não é aceita por escolas ligadas à Associação Nacional das Escolas Católicas (ANEC). A medida, ‘estaria se tornando comum’ em ‘pequenos’ colégios, inclusive católicos, que não são confessionais, ou seja, que não são considerados oficiais pela Igreja.
Outro lado
Procurado pelo BHAZ, o colégio diz que “desconhece o fato e vai apurar por meios cabíveis”. No entanto, a reportagem teve acesso a e-mails com endereços institucionais comunicando sobre a medida, além de cópias e fotos das questões. Checou com vários professores, que não se conhecem e que foram encaminhados à secretaria do colégio para responder às perguntas. Em todos os casos, houve relatos iguais sobre a forma e conteúdo da aplicação, inclusive, com descrição do espaço onde o processo ocorreu e as próximas orientações sobre a seleção.
Nesta sexta-feira (25), o BHAZ voltou a entrar em contato com o colégio e aguarda um posicionamento. A matéria será atualizada tão logo a resposta seja enviada.
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