Em 2021, a advogada Aline Lucas procurou uma ginecologista porque desejava fazer um procedimento de laqueadura. À época, com 25 anos, ela não tinha filhos, mas estava certa de que não queria ser mãe. “Quando perguntei se na clínica realizavam esse tipo de procedimento, ela deu risada e perguntou se eu era maluca. Disse que eu era nova demais para tomar uma ‘decisão radical’ como aquela e questionou o que eu faria se meu marido quisesse ter um filho”, lembra. Mulher lésbica, a advogada também ouviu que ninguém na clínica atenderia o seu desejo e que seria pouco provável que ela conseguisse fazer o procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Embora Aline já tivesse idade o suficiente para ter o direito, garantido por lei, de realizar o procedimento, a advogada acabou se deparando com questionamentos que carregavam condições também expressas na legislação brasileira vigente no período – principalmente a que dizia sobre a necessidade de que pessoas em situação conjugal precisavam do consentimento dos cônjuges para a esterilização. Na prática, a lei de 1996 fazia com que mulheres e homens dependessem da autorização do parceiro ou parceira para realizarem procedimentos de laqueadura ou vasectomia.
A história da advogada poderia ter sido diferente neste ano, já que uma norma que facilita a realização das cirurgias contraceptivas entrou em vigor no início de março. Uma das principais mudanças retira a necessidade de que cônjuges aprovem a realização dos procedimentos – fator que, à época, pode ter influenciado a recusa da ginecologista. A nova lei também traz outras alterações importantes, entre elas a diminuição da idade mínima para a realização das cirurgias contraceptivas. Agora, homens e mulheres a partir dos 21 anos podem optar pela esterilização, mesmo sem filhos. A idade mínima anterior era de 25 anos – pessoas com idade abaixo dessa faixa precisavam ter, no mínimo, dois filhos.
Segundo a médica Adriana Guimarães Moreira Sad, que atua nas áreas de ginecologia, obstetrícia e sexologia, o impacto das novas modificações na Lei de Planejamento Familiar é grande. “Elas respeitam a decisão da mulher de não ter mais filhos e também evitam que tenham uma gestação indesejada. Ela diminui o índice de abortos e o risco de que as mulheres passem por dois procedimentos cirúrgicos em momentos diferentes da vida, já que a laqueadura pode ser agora feita após o parto, além de gerar uma economia para a saúde pública”, observa.
Embora Adriana avalie as alterações como um avanço, principalmente para as escolhas individuais de homens e mulheres, ela pondera que outras mudanças também são necessárias. “Acho que estamos passando o carro na frente dos bois porque, antes de tudo, a população precisa de um acesso integral à saúde, que é algo que nós não temos. Embora o SUS seja um órgão com uma expansão gigante por um país da proporção do nosso, ainda fica muito a desejar. Principalmente no Nordeste e no Norte, nas populações ribeirinhas e nos lugares mais pobres”, pontua.
Segundo a médica, a falta de agilidade do sistema, que não atua na velocidade necessária de acordo com a demanda, também é um problema. “Acredito que primeiro deveria ter um acesso maior, antes de diminuir a idade”, diz ela, exemplificando com o caso de uma conhecida, que, aos 21 anos, já tem três filhas e ainda não fez o procedimento. “É uma realidade que também está muito próxima da gente. O SUS não consegue dar vazão a toda essa demanda”, relata.
Adriana também evidencia a problemática da laqueadura feita após o parto. Embora ela facilite a realização do procedimento, inclusive tornando-o mais rápido, ela explica que a gestação pode não ser o momento mais adequado para essa tomada de decisão. “Quando você está grávida, é difícil ter certeza de que você quer fazer a laqueadura. A gravidez pode não vingar. E se algo acontecer com a criança? Pode acabar a chance de que a mulher gere filhos”, afirma.
Ela ainda ressalta que, embora a vasectomia e a laqueadura possam ser procedimentos com chance de reversão, voltar atrás não é das tarefas mais fáceis. Além disso, as cirurgias que revertem o procedimento não são oferecidas pelo SUS.
Outra questão pontuada pela médica diz respeito às cirurgias de esterilização feitas nas mulheres. “A laparoscopia, que é uma cirurgia mais simples, feita com menos de uma hora e com uma recuperação de no máximo cinco dias, não é oferecida pelo SUS. No caso da laparotomia, que é uma cirurgia feita pelo abdômen, como se fosse uma minicesárea, requer um período de recuperação de 15 dias. Isso não é produtivo para o próprio sistema, que precisa pagar o afastamento da paciente depois de 15 dias e pode causar problemas na empresa em que a mulher trabalha, por ter que mantê-la afastada por um período maior”, observa.
Conforme a médica, essa questão esbarra também na falta de preparação da saúde pública para oferecer o melhor tipo de procedimento, não apenas na questão de aparelhagens, mas também na força de trabalho: “Além de ser cirurgião, é preciso que seja feita uma prova em São Paulo para ser apto para fazer a laparoscopia. São detalhes que, no final das contas, pesam muito”.
Como é feita a laqueadura
Segundo Adriana Sad, a laqueadura é um procedimento realizado em bloco cirúrgico com anestesia peridural ou raquianestesia. Nessa cirurgia, partes das trompas são cortadas e amarradas – quando o procedimento é feito por laparotomia ou cirurgia aberta. Quando realizada por laparoscopia, procedimento não disponibilizado pelo SUS, a intervenção é mais rápida, assim como a recuperação da paciente.
Como é feita a vasectomia
Ainda, conforme a médica, a vasectomia é um procedimento mais simples. Realizado em ambulatório e com anestesia local, a cirurgia acontece com o corte dos dutos deferentes direito e esquerdo, o que impede que espermatozoides saiam dos testículos para a uretra.
Principais mudanças na Lei de Planejamento Familiar
- O aval do cônjuge não é mais necessário;
- Para pessoas sem filhos, idade mínima para o procedimento é de 21 anos;
- A laqueadura pode ser feita no momento do parto;
- Métodos e técnicas de contracepção deverão estar disponíveis no prazo máximo de 30 dias a partir da manifestação do interesse
Normas que não foram alteradas
- Necessidade de a mulher ou o homem manifestarem a vontade de realizar a esterilização no prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e a cirurgia
- Solicitação deve ser registrada em documento escrito e firmado em cartório, mas será desconsiderada em casos de “alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente”;
- Pessoas absolutamente incapazes só poderão passar pela esterilização voluntária com autorização judicial;
- Caso a mulher não cumpra os requisitos mínimos para realizar a laqueadura, o procedimento só poderá ser feito se a não realização dele ou se uma futura concepção oferecer risco à vida ou à saúde dela – caso deve ser testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
Fonte: O Tempo.



















