O fervor em torno da lei de isonomia salarial e a falta de conhecimento tem tornado as mulheres e os homens confusos. O frisson é tão grande como ir ao filme da Barbie. A lei é belíssima e só revela a força do pós-positivismo que une o direito à moral. É uma lei humanística; rosa. A Lei 14.611/23 visa a garantia de salários iguais e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres no exercício da mesma função, ou que realizam trabalho de igual valor.
O texto altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determinando que a vítima da discriminação salarial, além de ter direito de receber a diferença de salário, poderá também entrar com ação indenizatória por danos e multa de maior valor para o empregador que viole o disposto na lei, podendo chegar até 10 vezes o valor do novo salário — valor elevado ao dobro caso haja reincidência. Para garantir a igualdade salarial, a lei impõe mecanismos de transparência salarial e critérios remuneratórios.
Para onde olharmos no âmbito do trabalho veremos a predominância dos homens nas funções de liderança empresarial e mulheres ganhando menos que homens. Esse é o fato social. A facada. Mas essa questão não será resolvida pela lei. O mimetismo da lei, que mais parece como um protocolo de intenções, não ofusca seu real valor. Essa é a relevância. A lei quer provocar modificações na cultura organizacional empresarial.
A regulação da sonhada igualdade salarial entre homens e mulheres é complicadíssima e reside justamente no conceito de igual valor e função idêntica, que são subjetivos e necessitam de prova. Se quem for avaliar o critério de igual valor for alguém que queira respaldar a diferença, percebe-se que a lei é inócua, um ensaio, mas bem-intencionado.
Além das dúvidas gerais sobre a aplicabilidade da lei, que colide com a LGPD e muitos dispositivos constitucionais ao exigir informações e a política de vigilância referente ao tratamento da mulher no trabalho, a regulamentação só ganha intensidade nas empresas com mais de 100 empregados. Fora isso, empresas são isentas de informar.
Por esse motivo, é preciso deixar claro que lei nenhuma vai fazer com que seus salários sejam majorados de uma hora para outra e tampouco patrões estão obrigados a equiparar os salários de uma mulher com o colega do lado. Não há nada automático, não há consolidações, muito embora a lei tenha alterado dispositivos da CLT.
Brasileiros adoram leis. E essa lei surgiu da cambialidade desse lugar, extremamente dual, onde duas esferas se chocam nitidamente – a proibição constitucional à discriminação de salário por motivo de gênero e a prática. A via judicial será então o lócus de solução dessa conflitiva antropológica e social, pois pode impor multas e condenar em danos morais.
Parece que a lei, dessa vez, não ignorou a carga valorativa que informa o fato jurídico. As mulheres ganham, em média, 78% do salário dos homens. Em cargos de gerência e direção a disparidade é ainda maior: o salário delas equivale a cerca de 60% do salário dos homens, mesmo ocupando postos de trabalhos semelhantes. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) realizada pelo IBGE.
A ideia de completude do sistema positivo codificado é mesmo um sonho. O Direito é incompleto e nunca pode regular tudo. Mas pode criar novas culturas e fomentar valores, sobretudo numa democracia. O debate democrático é infinito. As agendas feministas também. No ano passado, cerca de 36 mil processos foram ajuizados na Justiça do Trabalho cujo tema era a equiparação salarial ou a isonomia.
A nova lei é, sem dúvidas, uma contraofensiva à misoginia e uma demarcação política à desigualdade salarial. O governo pensou na mulher. Bobbio afirmava que a apatia política dos cidadãos compromete o futuro da democracia. A recomposição e os alinhamentos feitos com as mulheres mostram que há consistentes investimentos na esfera da sua participação cívica.
Ainda que por certas franjas, como através do cuidado com a questão do pagamento pelo trabalho, pelo aumento das mulheres no espaço de poder, pela incorporação da perspectiva de gênero nesses espaços e pelo esforço colossal do Executivo, Legislativo e Judiciário de reduzir a vulnerabilidade da mulher. Vemos uma democracia rosa. Barbie está nos cinemas e os parâmetros morais de justiça, esses sim, estão na lei. É um esforço dentro do pacto democrático, hoje – pink.
Maria Inês Vasconcelos, advogada Constitucionalista, pesquisadora e palestrante