sexta-feira, 26 de abril de 2024

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Peter Lund, 220 anos: conheça o lado ‘Indiana Jones’ de um mito da ciência

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Curvelo, Lagoa Santa, Matozinhos e Pedro Leopoldo – Um terreno inóspito, castigado pelo sol forte. Permeado de trilhas incertas em desfiladeiros e galerias subterrâneas obscuras. Ermo espreitado por animais peçonhentos e refúgio de traficantes de tesouros naturais. Se após seu trabalho no cerrado mineiro, no século 19, o dinamarquês Peter Wilhelm Lund (14/6/1801-25/5/1880) foi aclamado e se tornou conhecido como o pai da paleontologia brasileira, nos idos do século 19 o enfrentamento a um cenário desolado e perigoso foi o custo pago para trazer à luz um passado pré-histórico. Hoje, em comemoração aos 220 anos do nascimento de uma das figuras mais importantes da ciência, sobretudo para Brasil e Dinamarca, reportagem especial do Estado de Minas refaz parte dos caminhos percorridos por Lund na Região Cárstica de Lagoa Santa.

A primeira viagem do jovem médico dinamarquês ao Brasil foi entre 1825 e 1829, quando estava na casa dos 20 anos. Regressou com ricas amostras botânicas e de pássaros. Em 1833, Lund retornou para mais explorações, sendo que em 1834 iniciou as descrições e trabalhos científicos que lhe valeriam renome, ao lado do artista e auxiliar norueguês Peter Andreas Brandt, que ilustrava as descobertas e paisagens.

A parceria entre os dois escandinavos pelo cerrado mineiro parte de Curvelo, na Região Central de Minas. Visitaram muitas cavernas, sendo o primeiro registro gráfico o da Lapa dos Gentios. A gruta estava desaparecida desde então, mas expedição registrada pelo EM, com especialistas do Centro Universitário Newton Paiva e do Grupo de Estudos Espeleológicos Opilião, pode tê-la reencontrado.

Foi também em Curvelo que a dupla enfrentou uma ameaça ainda viva contra o patrimônio paleontológico: os hoje milionários tráfico e leilões virtuais de fósseis de preguiças gigantes, tigres de dentes-de-sabre e de artefatos pré-históricos brasileiros para a Europa. Outro dinamarquês, Peter Claussen, era um dos principais rivais dos trabalhos de Lund, chegando a roubar fósseis descobertos pelo naturalista e a vendê-los no mercado cladestino, deixando o cientista furioso e obrigando-o a se embrenhar mais cerrado adentro.

Essa interferência predatória fez com que Lund e Brandt se afastassem das cavernas próximas a Curvelo, quase todas já reviradas por mineradores de salitre. Por outro lado, os levaram aos seus primeiros registros de pinturas rupestres, em 1836, na Lapa dos Poções, e ao esplendor dessas representações do homem pré-histórico na Lapa da Cerca Grande, em Matozinhos. “A admirável paisagem que nos rodeia atraíra a atenção do homem selvagem. O sopé do rochedo se acha coberto de desenhos. Produções do espírito humano no mais ínfimo grau do seu desenvolvimento”, disse Lund sobre a Cerca Grande.

Esse extenso e variado mural a céu aberto tem mais de 10 mil anos. Está prestes a constituir um parque estadual, com previsão de ser formalizado em setembro e que poderá ser visitado posteriormente. O Parque Estadual de Cerca Grande tem 134 mil hectares sob gestão do Instituto Estadual de Florestas (IEF-MG) e é tombado pelo Instituto Histórico e Artístico do Patrimônio Nacional (Iphan) desde 1962. No local, se destacam a beleza cênica, a educação ambiental e mais de 900 pinturas rupestres.

A paisagem até o conjunto preservado de Cerca Grande é incomum e intrigou Brandt ao ilustrá-la na companhia de Lund. Entre o cerrado pouco montanhoso e as pastagens, brotam ilhas de pedras escuras, cercadas por lagoas que afloram dos subterrâneos e não de rios superficiais, as quais Lund comparou a castelos. As estradas passam por depressões denominadas dolinas. São abatimentos criados pela erosão lenta da água de passagens subterrâneas no solo calcário.

Foi em volta da grande rocha calcária que se destaca no cerrado, chamada Pedra dos Índios, que o homem pré-histórico marcou sua passagem, deixando pinturas em vários níveis externos e em cavernas altas, conhecidas como janelas. São desenhos geométricos da tradição de figuras “São Francisco”, e de animais, que lembram porquinhos, pássaros, lagartos, veados e macacos, da tradição “Planalto”.

Sugerem a farta presença animal nos arredores dos rochedos. Cerca Grande, dizem, foi denominada assim por serem essas rochas calcárias de 20 metros de altura obstáculos usados para apartar as pastagens do gado, com uma ampla passagem ligando as extremidades por um desfiladeiro e uma caverna em túnel.

Na seca, a aproximação a pé é simples, com as dificuldades chegando junto com as chuvas. Nessa estação, de dentro das pedras brotam águas contínuas até formarem uma lagoa ao redor da Pedra dos Índios. “Primeiramente, Lund não se aprofunda nas interpretações das inscrições, pois julgava terem sido feitas por índios contemporâneos (caiapós). Em Curvelo, as grutas estavam escavadas para minerações de salitre. Mas, indo além, ele encontrou locais mais preservados, onde pôde fazer escavações durante o tempo seco e estudar os achados até a passagem da estação chuvosa”, afirma o pesquisador e professor do Centro Universitário Newton Paiva Luciano Emerich Faria, e doutor em história da ciência.

As imediações da Cerca Grande foram deixadas depois de três meses e explorações. Lund e Brandt se instalariam em Lagoa Santa, o que possibilitou as descobertas mais importantes e uma reviravolta científica que mudaria o entendimento da ciência sobre a pré-história – um caminho de aventuras que a série de reportagens continua a descrever na próxima edição.

Em Lagoa Santa, a dupla de estudiosos ficaria até a morte. Num local amplo, com vista para o lago principal, Lund plantou um pequizeiro, à sombra do qual admirava a paisagem e meditava. Naquele terreno, enterrou seu companheiro de pesquisas e expedições, Brandt, em 1862. Ao lado dele, escolheu o próprio local de descanso. Foi sepultado, à sombra da árvore, em 1880. O túmulo deles e o pequizeiro continuam na cidade.

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