segunda-feira, 29 de abril de 2024

Contato

Quer um feedback? Como o vocabulário empresarial invadiu nossas vidas

Por Dentro De Tudo:

Compartilhe

Em vez de uma opinião ou conselho, pedir ou oferecer um “feedback”. No lugar de sugerir ou informar um prazo, dar o seu “deadline”. E, se ficar alguma dúvida, vale fazer uma ligação, ou melhor, uma “call”.

Não é segredo para ninguém que, nas últimas décadas, vários estrangeirismos foram sendo incorporados ao vocabulário profissional de muitas categorias e setores, constituindo quase um dialeto particular muito associado à cultura empreendedora e empresarial. A novidade é que essas expressões já se tornaram tão habituais que já aparecem também, sem causar estranhamento, em conversas entre amigos e familiares. Não é difícil imaginar, por exemplo, a situação em que uma pessoa, no contexto de uma relação de amizade, marque uma “call” com alguém de sua confiança para pedir um “feedback” sobre um tema que não tem nada a ver com o universo do trabalho.

Curiosamente, mais do que denotar uma mudança na maneira de se comunicar, o uso desses neologismos costuma ser acompanhado de outras modas, que funcionam bem no ambiente profissional e, agora, aparecem também nos nossos lares. Caso do hábito de criar “checklists” para tudo, ordenando e até cronometrando as atividades do dia a dia, que aparecem listadas e etiquetadas em tabelas, planilhas, agendas.

Na avaliação da psicóloga e psicanalista Camila Fardin, estamos falando de um fenômeno que não é sem efeitos. “Esse vocabulário denuncia um modo de pensar segundo o qual nossa vida deixa de ser vivida para ser gerida”, crava, assinalando que a invasão do vocabulário e comportamento empresarial nas nossas vidas é efeito de uma cultura mais abrangente, sendo sintoma e consequência do que teóricos chamam hoje de “sociedade do desempenho” – “pautada por um sentido de positividade que diz: ‘yes, we can’, ou seja, ‘sim, nós podemos’, sugerindo que podemos qualquer coisa, basta que a gente queira, basta que a gente tente, se empenhe, se dedique e tenha foco”. 

“Por essa lógica, tudo é sobre o poder da motivação e a necessidade de estar o tempo todo motivado”, avalia. “Tanto é assim que basta passar alguns minutos nas redes sociais para esbarrar em várias publicações recheadas de informações motivacionais”, lembra. “É como se tudo pudesse ser resumido à ideia de que, se eu quero, eu posso e consigo, bastando que eu me motive para tal – o que, na verdade, é terrível do ponto de vista psicológico”, critica a especialista.

Constante pressão

“Essa sociedade do desempenho força o indivíduo a, sozinho, explorar a si mesmo. Então, não é mais o emprego que explora o indivíduo, mas ele próprio que, sozinho, explora a si mesmo, fazendo que tudo gire em torno da sua própria motivação, na tentativa de ser cada vez mais produtivo”, comenta Camila Fardin, ponderando que a situação é problemática na medida em que, ao contrário do que sugere um pensamento mágico, podemos simplesmente querer algo e não conseguir. Mas, por estarmos habituados a pensar que aquela conquista dependia exclusivamente do nosso esforço pessoal, mais do que uma frustração momentânea, essa situação pode produzir em nós um sufocante sentimento de fracasso – sobretudo perante uma sociedade que ostenta tanto sucesso.

O resultado, avalia, é que passamos a conviver com uma sociedade de deprimidos e ansiosos, entre outros efeitos. “Na rotina do consultório, do tratamento da saúde mental, vemos uma série de adultos em busca de diagnósticos tardios de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou de autismo, pensando que o problema de não se sentirem focados o suficiente estaria neles, ignorando o fato de vivermos em um mundo repleto de estímulos, em que é difícil focar uma atividade só – inclusive porque é esperado de nós o desempenho de múltiplas tarefas em multiplataformas”, reflete, ponderando que, evidentemente, a busca de um diagnóstico precisa ser feita, individualmente, perante o histórico de cada sujeito.

A psicóloga e psicanalista lembra ainda que essas crenças levam muitas pessoas também à busca excessiva de medicação. “Se, de repente, sentimos que não temos foco suficiente, se não nos sentimos tão dispostos naquele momento, simplesmente buscamos remédios para ‘corrigir’ essas ‘falhas’”, comenta.

Reflexões compartilhadas

As considerações de Camila Fardin estão alinhadas com reflexões propostas por pensadores contemporâneos, como o sul-coreano Byung-Chul Han, que critica o fato de, no mundo contemporâneo, termos nos tornado sujeitos de desempenho e produção ou, nas palavras dele, “empresários de si mesmos”. Segundo o autor de livros como “Sociedade do Cansaço” (2015, Vozes), uma série de problemas se origina dessa lógica. Ele sugere, por exemplo, que a crença de que o sucesso depende exclusivamente do nosso esforço, desconsiderando fatores externos, pode causar frustração e adoecimento mental, assim como a tentativa de se manter produtivo em tempo integral, tendo como um dos efeitos mais evidentes a síndrome de burnout.

Para evitar a armadilha de seguir essa cartilha de maneira impensada, mas sem deixar de usar ferramentas que podem ser úteis para nós no dia a dia, Camila Fardin sugere justamente a leitura de publicações de pensadores como Byung-Chul Han. “A principal ferramenta e a mais importante para não cair nessa lógica do utilitarismo, do desempenho, é o conhecimento. É poder ler filósofos como ele, que tratam desse tema e, com base nessa leitura, partir para a nossa vida, refletindo sobre como tudo vira utilitarismo e como isso é ruim, nos fazendo deixar de saborear a nossa própria vida”, assinala.

Outro olhar

Nesse sentido, vale mencionar também o trabalho do líder indígena e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) Ailton Krenak, que já falou sobre a importância de se retomar um olhar carinhoso para o que não é, necessariamente, “útil”, em oposição a uma visão excessivamente utilitarista da existência – que ele denuncia no livro “A Vida Não É Útil” (2020, Cia das Letras).

Para escapar dos ditames da sociedade do desempenho, portanto, Camila segue os conselhos de Krenak ao lembrar que nem tudo o que fazemos precisa ter uma utilidade e contribuir para um aumento da nossa produtividade. “Eu não preciso pensar na utilidade, por exemplo, de descansar na beira de uma piscina em um fim de semana. Eu posso, por outro lado, pensar no sabor que essa experiência tem, na qualidade daquelas horas para a minha vida. Caso contrário, posso chegar à conclusão que aquelas horas estariam sendo desperdiçadas, porque eu poderia estar estudando ou fazendo algo mais ‘útil’, alimentando um pensamento que é extremamente cansativo”, assevera.

Fonte: O Tempo.

Encontre uma reportagem

Aprimoramos sua experiência de navegação em nosso site por meio do uso de cookies e outras tecnologias, em conformidade com a Política de Privacidade.