De dentro dos presídios do Brasil, muitas pessoas se preparam para trabalhar “do lado de fora”. Em todo o país, 20% dos cerca de 670 mil internos (134 mil) têm a oportunidade laboral. Em Minas Gerais, o cenário é um pouco melhor: 26% dos custodiados têm essa chance. No caso do advogado Greg Andrade, 49, parte do cumprimento da pena foi também o início do empreendedorismo em sua vida. A importância de negócios sociais como alternativa para uma nova vida para ex-detentos é o tema da última reportagem da série “Ninguém Solta a Mão”.
“Cumpri 16 anos de sentença. Fiz o ensino fundamental e médio no sistema prisional. Iniciei minha graduação em direito ainda no regime semiaberto. Agora, tenho meu escritório”, afirma. Mais do que empreender, Greg Andrade dá oportunidade para que outros egressos do sistema prisional recomecem suas vidas. No caso de Ana*, 37, o apoio do advogado chegou alguns dias antes de ela deixar o sistema prisional. Uma amiga dela ocupava a vaga, mas precisou voltar para o interior e a indicou. As habilidades para o trabalho foram desenvolvidas, inclusive, dentro da prisão.
Durante os três anos e meio que passou cumprindo pena, ela trabalhou, fez cursos e iniciou a graduação em administração. “Eu me apegava ao estudo e ao trabalho. Às vezes, em um fim de semana lia dois livros”, conta. As atividades a aproximavam da “rua”.
“O trabalho me deixava mais perto da liberdade física, por causa da remissão da pena, e também da liberdade mental. Eu pensava em outras coisas”, revela Ana. O apoio de Greg Andrade, que já dura quase quatro anos, a livrou do preconceito sofrido pelos egressos. “Diretamente, nunca sofri preconceito. Mas a dificuldade (de ser empregado) existe”, garante ela.
Para o juiz da Vara de Execuções Criminais de Contagem e membro da Coordenadoria de Segurança da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis), Wagner de Oliveira Cavalieri, o trabalho é uma importante alternativa na luta por uma reinserção digna de quem esteve no sistema carcerário. “O trabalho é importante em qualquer etapa da vida. Ele dignifica a pessoa e, tratando-se de sistema prisional, a importância é ainda maior porque acaba permitindo que o indivíduo rompa alguns laços anteriores com a própria criminalidade.
Dentro das unidades prisionais temos o esforço do Estado e várias entidades privadas tentando propiciar número maior de vagas”, afirma.
Ainda segundo o magistrado, grande parte dos detentos quer trabalhar e se qualificar, porém as vagas ainda são escassas. Na penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, apenas 300 dos 2.500 presos trabalham. “Acho que faltam campanhas publicitárias para mostrar para os empresários que é vantajoso ter a parceria com a unidade. Temos pessoas com boas habilidades, e o custo é menor do que um empregado de fora”, diz.
Estigma é impasse para apoio aos presos
A auxiliar de limpeza Nayara Guimarães Soares, 30, já perdeu as contas de quantas portas se fecharam para o irmão, de 33 anos, recém-saído do sistema prisional. “Ele saiu da cadeia há dois meses, depois de ter ficado lá três anos. O problema é que tem muito preconceito ainda por ele nunca ter trabalhado de carteira assinada e ter sido preso. Tenho muito medo de ele voltar para lá porque quer ter as coisas e não tem dinheiro por não conseguir emprego”, conta.
Pai de uma criança pequena e em processo de reconstrução do casamento, o ex-presidiário – que terá o nome preservado – já começa a desanimar. “Ele fala que tudo na vida dele está amarrado e demonstra muita tristeza por não conseguir emprego”, diz.
O cenário de exclusão encontrado por ele é bastante comum entre aqueles que tentam deixar o crime no passado. A dificuldade já começa no baixo número de pessoas que conseguem uma oportunidade ainda no cárcere, segundo a presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, Maria Teresa dos Santos. “Eles querem estudar e se qualificar. O Estado precisa investir em cursos que geram renda, pois só assim para os meninos não cometerem outros delitos ao sair”. E o preço da falta de oportunidade é alto: “Os egressos se veem sem nada no bolso, e os criminosos, com muito. Aí não tem jeito”, diz, reforçando que a reincidência acaba se tornando a única opção.
União entre empreendedores e Apacs abre novos caminhos
Um ano e 11 dias. Esse é o tempo em que José Leone de Araújo Júnior, 24, está custodiado na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) de Caratinga, na região do Rio Doce. Nesse período, ele já fez um curso de costura e outro de administração. Por isso o recuperando gerencia o setor de alimentação da unidade. “Minha história mudou. Eles te mostram que é possível viver uma vida melhor e te preparam para isso”, define.
Além dele, 149 internos trabalham e estudam na unidade de Caratinga. São essas oportunidades que garantem que 85% dos egressos de Apacs não reincidam no crime, conforme dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). No sistema comum, esse índice é de aproximados 15%.
A Apac de Caratinga abriga fábricas de vassouras, blocos e costura. Além disso, há escola para todos os anos do ensino fundamental e do médio. Conforme a gerente geral da instituição, Adriana Luppis, 17 recuperandos fazem cursos superiores a distância. “A pena deles vai acabar, e a gente quer que eles voltem para o convívio com a sociedade tendo uma abertura para a inserção no mercado de trabalho. Por isso eles precisam se qualificar”, diz.
É por causa desse aprendizado que José Leone já pensa em trabalhar fora da Apac. Recuperando do semiaberto, ontem ele enviou um currículo para uma distribuidora da cidade. “No início, devo ficar na área de separação de pedidos. Mas a pessoa que me indicou a vaga diz que é possível ir crescendo. É uma empresa conhecida e muito boa”, conta. No sistema comum, Leone não teve chance de estudar ou trabalhar. “Lá (no presídio) tem tudo para dar errado. As pessoas só falam em crime, ficam planejando mais crimes. A pessoa fica tão afastada da comunidade que não sabe mais como se envolver com pessoas de bem”, compara.
No ano passado, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Minas Gerais (Sebrae-MG) esteve na Apac de Caratinga. Um projeto do Sebrae em conjunto com a unidade procura, desde 2018, melhorar a gestão das unidades produtivas da unidade. “Outro objetivo é estimular o empreendedorismo entre os recuperandos. Queremos ainda sensibilizar a classe empresarial com relação à geração de emprego”, comenta o gerente regional do Sebrae na região do Rio Doce, Fabrício César Fernandes. Em um café empresarial realizado no ano passado na instituição de Caratinga, foram criadas 11 vagas de emprego, cinco bolsas de graduação e uma de pós-graduação.
O juiz Gustavo Moreira, coordenador do Programa Novos Rumos do TJMG, destaca que a metodologia da Apac não passa do cumprimento da Lei de Execução Penal. “É uma metodologia que propicia tratamento humanizado, com respeito, voltado para restabelecer os vínculos profissionais, familiares e espirituais de quem cumpre pena. Permite nova vida para que as pessoas possam trabalhar e se capacitar. A rotina, que começa às 6h e se estende até as 22h, busca sensibilizar os internos para o ‘caminho do bem’”, explica o magistrado.
Por causa do êxito da proposta, Gustavo Moreira acredita que o sistema prisional convencional deveria pelo menos receber mais investimento para que fosse possível aprimorar o tratamento dos detentos. “Temos mais de 600 mil presos no Brasil e, em Minas, o número ultrapassa 60 mil. A superlotação dos presídios é um dos fatores que contribuem para que as oportunidades não sejam dadas. Enquanto a Apac recupera até 85%, o sistema comum não passa dos 15%”.
Estado quer ampliar atividades nos presídios
O governo de Minas pretende expandir o trabalho e o empreendedorismo dentro dos presídios. “A nossa perspectiva é sempre aumentar as vagas. Queremos, em dois anos, ter mais de 25 mil presos nessas atividades. Estamos visando cursos de empreendedorismo, informática, eletricista predial, pedreiro, marceneiro. Buscamos aquilo que será mais fácil para eles conseguirem emprego”, afirma o diretor de Trabalho e Produção do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG), Paulo Duarte.
O trabalho possibilita a remissão de pena. “A cada três dias trabalhados, tem a redução em um dia. Com as empresas privadas, eles têm remuneração de 3/4 do salário mínimo, que é dividido em três partes: 50% para a família, 25% de ressarcimento aos cofres públicos e 25% para a conta poupança do preso, que só tem o acesso liberado ao término da pena ou com a liberdade condicional”, detalha Paulo Duarte.
A busca por empresas parceiras precisa ser uma constante por parte do poder público, conforme analisa o especialista em segurança pública Arnaldo Conde. “É preciso que se busquem alternativas para possibilitar emprego e renda aos egressos. Uma boa forma de isso acontecer é incentivar a iniciativa privada a fazer as contratações, começando durante o cumprimento da pena”.
Conde reforça a importância de utilizar exemplos de sucesso, como as Apacs. “É preciso também que a sociedade quebre o preconceito que há com os egressos. A segunda chance é muito importante. Todos passam por momentos ruins na vida”.
O diretor do Depen esclarece que o Estado está aberto a receber empresas que queiram atuar nas unidades prisionais administradas pelo órgão. Hoje, das 172 unidades, 171 oferecem oportunidades de trabalho internas ou por meio de parcerias com a iniciativa privada – são 16.442 detentos em atividade laboral.
FoNte: O Tempo.