Pelo menos 9,4 milhões de brasileiros sofreram violência sexual alguma vez na vida. As mulheres são historicamente as maiores vítimas do crime — em 2021, uma mulher foi estuprada a cada dez minutos no Brasil — e os agressores são habitualmente homens. Mas, nesse universo de milhões de pessoas assediadas ou violentadas, há homens como vítimas. Cerca de 1,8 milhão declaram ter sofrido violência sexual, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como a maioria dos agressores também é homem, o trauma fica maior com o peso do machismo, avaliam especialistas, já que estereótipos de gênero, como a suposta força masculina, podem levar homens a esconderem por décadas o que sofreram.
Esse tipo de relato se repete nos atendimentos realizados pelo projeto “Memórias Masculinas”, criado durante a pandemia para prestar apoio psicológico a homens adultos que sofreram violência sexual em qualquer momento da vida. Gratuito e online, ele dá acesso a terapeutas especializados no tema para atendimentos em momentos de crise emocional. Desde janeiro de 2021 até o início deste ano, mais de 1.000 consultas foram realizadas e ele se consolida, por enquanto, como o único grupo de apoio desse tipo no país.
“Majoritariamente, os homens que atendemos foram vítimas de violência sexual na infância, mas também há uma grande porcentagem, 34%, que foram vítimas na adolescência. A maioria dos homens que atendemos é heterossexual e faz sexo com mulheres, mas as violências são majoritariamente cometidas por outros homens. É grande o medo das vítimas de que isso os ‘torne gays’, como se a violência pudesse provocar isso. Isso faz com que os homens vítimas de outros homens falem muito menos sobre o assunto”, detalha o idealizador do projeto, o psicólogo Denis Ferreira.
Os casos de violência sexual contra homens entre 2010 e 2021 são 12,1% do total de registros do Ministério da Saúde. Só nesse período, 43,2 mil casos foram notificados oficialmente — quase 5.000 em Minas Gerais. Na infância, entre os 5 e 9 anos, a porcentagem de meninos e meninas que sofrem violência sexual é similar, de acordo com análise da Unicef com o Fórum Nacional de Segurança Pública, e vai se distanciando nas faixas etárias mais velhas, com uma proporção muito superior de mulheres. Pesquisadores reconhecem que, de fato, elas são mais afetadas, porém a proporção de homens vitimados pode ser muito maior do que as estatísticas demonstram.
“Quanto mais velho, menos o menino tende a revelar que sofreu violência sexual. Isso porque, quanto mais velho, mais se percebe os estereótipos de gênero e mais a pessoa tenta se comportar de acordo com ele. O papel de gênero masculino gira em torno de características que remetem à força, e há certa incongruência com isso quando o menino se percebe vítima de violência sexual. Não é que não se sinta amedrontado e triste com o que ocorreu, mas ele percebe que esse papel de vítima não é aceito”, analisa o professor de psicologia da Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (Imed) de Passos, no Rio de Grande do Sul, Jean Von Hohendorff, especialista no tema.
Do assédio ao estupro, a violência sexual que homens relatam ter sofrido
Quando tinha 10 anos, o próprio Denis Ferreira, do “Memórias Masculinas”, teve seu primeiro contato com a violência sexual. Nos momentos sozinho com um amigo da família, de cerca de 30 anos, o homem falava de seus atos sexuais em detalhes gráficos para a criança.
“Pode parecer inofensivo, mas uma criança de 10, 11 anos ouvir sobre experiências sexuais tem um impacto profundo. Eu me lembro exatamente de ele dizendo coisas. Dizia que beijava, depois tirava a roupa, como ele fazia atos penetrativos. Ele me fez imaginar coisas que eu não estava pronto para imaginar. Em tese, essa é minha experiência de violência sexual sem contato físico por meio de falas sexuais, conteúdo sexual”, relata.
Mais tarde, entre os 16 e 17 anos, ele voltou a sofrer violência sexual, desta vez cometida pelo fotógrafo da igreja que a família frequentava. Ele convidou o menino para assistir em casa a um VHS de uma banda gospel da qual o adolescente era fã e o atacou. “Era uma pessoa muito querida, casada, heterossexual, muito respeitada por todas as pessoas da igreja. Quando ele colocou o VHS, eu estava animado de ver aquilo e ele passou a mão na minha perna, no meu pênis. Eu era um adolescente, acabei ficando excitado com a situação e pedi para ele parar. Ele tornou a passar a mão, quando percebeu que eu estava excitado e eu disse para parar, ou eu iria embora, e ele contra argumentou que eu estava gostando, então por que queria que parasse?”, conta.
O “Memórias Masculinas” conduziu uma pesquisa de rastreamento com 1.241 homens adultos, a maior parte deles com 25 a 39 anos, e pouco mais da metade identificada como heterossexuais. Cerca de 56% já ouviram frases sexuais ou eróticas de alguém sem desejarem e 30,5% foram beijados ou abraçados de forma sexual sem consentimento. Mais de um quarto dos respondentes, 33,2%, disseram ter sido forçados a ter relações sexuais, a maior parte deles mais de uma vez, e o envolvimento ou tentativa de relações sexuais anais não consentidos foram relatados por 22,2% dos homens ouvidos.
Esporte é terreno de denúncias de violência sexual contra homens
A violência sexual contra homens no esporte, especialmente em clubes de futebol, já foi inclusive alvo de campanhas dos próprios times. Em 2018, o Sindicato de Atletas de São Paulo mobilizou uma campanha contra a violência sexual em clubes, encabeçada pelo jogador Alê Montrimas, que passou por times europeus e paulistas e revelou ter sido vítima de investidas sexuais de técnicos aos 14 anos. Ele realizou visitas a clubes de base para explicar as implicações da violência sexual.
“É provável que outros jogadores se encorajem a revelar suas histórias e seus traumas. E a nossa sociedade descobriria que abusos, dos mais variados tipos, são uma triste realidade na vida dos atletas. Sabe por que isso ainda não aconteceu e dificilmente vai acontecer? Porque aqui a lei do silêncio é a regra”, escreveu, na época, em uma carta ao site “The Players Tribune”.
Professor de psicologia da Instituto de Medicina, Estudos e Desenvolvimento (Imed), no Rio de Grande do Sul, Jean Von Hohendorff explica que clubes de esportes não são especificamente locais de risco. “Agressores podem procurar contextos em que há maior número de crianças. Igrejas, grupos de futebol não são necessariamente contextos de maior risco, mas são contextos em que crianças ficam sob uma figura de autoridade, um treinador ou um membro da igreja acima de qualquer suspeita”, avalia.
Neste ano, o ex-BBB Rodrigo Mussi revelou, ao “Fantástico”, que foi vítima de violência sexual dentro de casa, vitimado por uma babá quando tinha 5 anos e vivia em um ambiente familiar turbulento. “Tenho algumas lembranças desse abuso. Umas das poucas coisas que eu tenho da infância”, declarou, três décadas depois.
Educação sobre gênero é fator de prevenção da violência sexual, diz pesquisador
Para Von Hohendorff, a redução de casos de violência sexual passa pela educação sobre estereótipos de gênero desde cedo, para que homens não encarem mulheres como objetos a ser conquistados ou pensem que não podem demonstrar vulnerabilidade. Ao mesmo tempo, ele defende tratamento para os agressores.
“Precisamos transpor essa ideia de que basta que eles sejam responsabilizados formalmente. Eles precisam ser, mas precisamos dar um passo além, a responsabilização. É preciso oferecer tratamento efetivo para esses agressores para que eles reconheçam a inadequação do que fizeram e tenham alternativa de lidar com o eventual desejo sexual inadequado que não seja cometendo violência”, diz.
Ele também reforça que é essencial os adultos transmitirem segurança às crianças e adolescentes para reduzir o silêncio sobre a violência sexual contra meninos. “Precisamos instrumentalizar os adultos para proteger as crianças, porque não cabe a elas se autoproteger. O adulto pode dizer à criança que quer que ela saiba que pode contar com ele para qualquer coisa que aconteça, por mais que a criança tenha medo, vergonha ou que alguém tenha pedido segredo, porque estará lá para ajudar. Essa palavra, ‘segredo’, é importante, porque os agressores geralmente são da família. É preciso fomentar canais abertos de diálogo com a criança, e não só aquele diálogo de repressão, de xingamento”, conclui.
Fonte: O Tempo – Foto: Pexels / Divulgação















