Celebrada no fim de 2020 pelo governador Romeu Zema como uma importante conquista para Minas Gerais, a construção da primeira fábrica do Grupo Heineken no estado está envolta em controvérsia. Afinal, a sua obra foi embargada pelo Instituo Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) por, entre outros fatores, colocar em risco um importante sítio arqueológico. Porém, para a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), responsável pela liberação inicial de instalação da empresa na localidade, a construção não teria “significativo impacto ambiental”.
É o que diz a Semad em trecho de nota oficial enviada à reportagem do Guia. “A Semad esclarece que, para fins de instrução do processo com os estudos PCA/RCA, foi considerado que a atividade se enquadra como grande porte, conforme capacidade instalada, mas o potencial poluidor geral da atividade é médio, não se configurando significativo impacto ambiental.”
A Heineken havia iniciado recentemente a fase de terraplanagem da área onde seria construída a sua fábrica, em Pedro Leopoldo, nas proximidades de um importante sítio arqueológico. É na região da cidade, a cerca de 40 quilômetros de Belo Horizonte, onde está localizada a Lapa Vermelha, um importante complexo de cavernas e grutas, que estaria ameaçada pela instalação da fábrica da cervejaria.
Para entender o impasse, a reportagem do Guia procurou as partes relacionadas ao caso, que envolve, em seu cerne, o natural desejo expansionista de uma das maiores fabricantes de cerveja do mundo, a vontade de gestores públicos de atraírem investimento para Minas Gerais, mas também o importante e, às vezes, perigoso impacto que uma obra e uma operação de grande porte provocam na região onde são realizadas. Nesse caso, nos lençóis freáticos e em um sítio arqueológico fundamental para explicar a origem do homem nas Américas.
Nesta reportagem, o foco está na atuação da Semad, responsável pela liberação inicial para a instalação da fábrica da Heineken em Pedro Leopoldo. De acordo com a secretaria, além de não serem significativos, caso ocorressem impactos, eles não seriam irreversíveis. “Os estudos ambientais e o pedido de informações complementares solicitado pela Semad não indicaram a possibilidade de impactos negativos irreversíveis nas cavidades localizadas na região”, acrescenta a nota.
É uma visão bem diferente da apresentada pelo ICMBio. Para o instituto, há risco de soterramento do complexo de cavernas que compõem o sítio arqueológico em função da instalação da fábrica da Heineken. Em uma delas, a Lapa Vermelha IV, foi encontrado o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas, com idade estimada de 13 mil anos.
A secretaria diz, porém, que tinha pedido ao Grupo Heineken estudos complementares de impacto nas cavernas e grutas do sítio arqueológico. “Já havia sido solicitada informação complementar, à empresa, sobre a análise de impactos ambientais às cavidades já mapeadas no entorno do empreendimento. Também foram solicitadas as medidas de mitigação para implantação. A questão da drenagem foi tratada em reunião específica.”
E garante que os trabalhos apontaram quais poderiam ser os impactos. “O estudo de análise de impactos às cavidades foi apresentado, assim como o Termo de Referência específico para implantação de empreendimentos em área de alto ou muito alto potencial espeleológico. Os estudos apresentados informam que não há impacto negativo irreversível nas cavidades mapeadas”, complementa a Semad.
Recursos hídricos
O uso da água do solo para a produção das cervejas na fábrica da Heineken também foi um dos fatores apresentados pelo ICMBio para embargar a obra. O instituto via com preocupação o plano do Grupo Heineken de bombear 150 metros cúbicos de água por hora de dois poços na região, o que causaria impacto relevante nos lençóis freáticos e nas cavernas do Cipó, Fedo e Nei.
Na visão do ICMBio, o risco geológico impede o avanço da obra da fábrica da Heineken sem a realização de estudos mais aprofundados, incluindo os dos efeitos da sua atividade nos lençóis freáticos.
A Semad, porém, afirma que foi pedida a análise geral das águas – tanto superficiais, quanto subterrâneas da região – antes que a instalação da fábrica da Heineken fosse liberada. “Foi ainda condicionada à licença de instalação uma pesquisa hidrogeológica para análise da capacidade de captação solicitada pelo empreendedor, assim como os impactos no entorno”, comenta.
Para embargar a obra, o instituto federal também alegou preocupação com o uso de recursos hídricos pela fábrica da Heineken e o seu impacto. Nesse caso, há alguma consonância com a posição da secretaria, que assegura que se exigiu da companhia a busca por alternativas caso ocorra impacto provocado pela captação. “O estudo hidrogeológico foi condicionado e caso seja verificado algum tipo de interferência com outros fatores ambientais o empreendedor deverá apresentar alternativa para captação de água.”
A secretaria defende, então, que a legislação para a liberação da obra foi cumprida. Assim, restaria ao Grupo Heineken a adoção de medidas que evitem o impacto ambiental. “A equipe da Semad entende que os ritos e normativas foram seguidos e o empreendedor é responsável por implantar as medidas mitigadoras necessárias e propostas à proteção do meio ambiente”, destaca.
Ainda assim, a secretaria terá de convencer o ICMBio, que apontou falhas e falta de dados nos relatórios de impacto ambiental produzidos para liberar a obra. Para isso, a Semad promete apresentar, nas próximas etapas da regularização do empreendimento, os motivos que levaram a secretaria a liberar a construção do empreendimento em Pedro Leopoldo.
“A Secretaria fará manifestação técnica com a demonstração da correção solicitada pelo ICMBio, no processo de regularização do empreendimento, e enviará, em seguida, à administração do Instituto. Pretende-se, com isso, demonstrar ter havido razão técnica e jurídica que orientou a Semad no deferimento da licença ambiental”, completa a Semad.
A cronologia
A secretaria explica que o pedido de licenciamento do empreendimento foi formalizado pela Heineken em 28 de junho, com a liberação sendo concedida em 24 de agosto “após deliberação da Câmara de Atividades Industriais (CMI) do Conselho Estadual de Política Ambiental”.
Entre o pedido da Heineken e a liberação para a instalação do empreendimento, a Semad enviou, em 9 de julho, ofício à Unidade de Conservação APA Carste de Lagoa Santa, do ICMBio, dando ciência do processo. De acordo com a secretaria, então, há quase uma semana, o instituto apontou o potencial de impacto da instalação da fábrica da Heineken em Pedro Leopoldo. Por isso, solicitou a produção de relatórios e estudos de impacto ambiental.
“Em 14 de setembro, a equipe técnica da Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri) da Semad teve acesso à Nota Técnica da APA Carste da Lagoa Santa/ICMBio. Segundo a avaliação do ICMBio, o empreendimento tem potencial de impactos nas cavidades da Lapa Vermelha e não poderia ter sido instruído por PCA/RCA, sendo necessária a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), além da anuência da Unidade de Conservação”, afirma, em nota oficial.
Dias antes, contudo, a obra já havia sido paralisada. De acordo com a Heineken, a companhia recebeu, no local onde seria instalada a sua fábrica, a visita do ICMBio em 10 de setembro. A partir desse encontro, o grupo paralisou as obras no local, que estavam em fase de terraplanagem.
O ICMBio relata, ainda, que uma audiência sobre o caso foi marcada para 9 de outubro. Na sala de conciliação, então, caso haja a apresentação de estudos e documentos necessários que assegurem a proteção do sítio arqueológico e o atendimento de outras demandas, a obra de construção da fábrica da Heineken em Pedro Leopoldo poderá ser retomada, como explica o instituto.
A fábrica
No anúncio da chegada de uma fábrica do Grupo Heineken a Minas Gerais, o governo estadual declarou que o empreendimento teria custo de R$ 1,8 bilhão para a sua construção. E apontou que mais de 300 empregos diretos seriam criados.
A fábrica em Pedro Leopoldo será a primeira da cervejaria em Minas Gerais, onde a companhia já possuía centros de distribuição e logística em Contagem e em Poços de Caldas, no qual o nível de estocagem foi triplicado recentemente. A planta industrial teria capacidade para produzir 760 milhões de litros por ano.
Caso a obra tenha sequência, a fábrica de Minas Gerais será a 16ª da companhia no país e pode ser considerada, de fato, a primeira do Grupo Heineken a ser construída pela própria empresa, pois as demais foram incorporadas com a aquisição da Brasil Kirin em 2017.
Lapa Vermelha
Nas proximidades da área onde a Heineken pretende construir a sua fábrica, a Lapa Vermelha é um sítio arqueológico em Minas Gerais, na região das cidades de Pedro Leopoldo e Lagoa Santa. Trata-se de um maciço calcário às margens de uma lagoa, com quatro grutas em seu penhasco, uma delas, a Lapa IV. E é considerado um sítio arqueológico de extrema fragilidade.
Nela, em 1970, uma missão arqueológica franco-brasileira, coordenada por Annette Laming-Emperaire, encontrou Luzia. A missão tinha a tarefa de retomar e aprofundar as pesquisas feitas por Peter Lund no século XIX.
Foi ele, considerado o pai da paleontologia brasileira, quem encontrou na Lapa Vermelha e na Gruta do Sumidouro, entre 1835 e 1845, milhares de fósseis de animais extintos da época Pleistoceno, além de 31 crânios humanos em estado fóssil no que passou a ser conhecido como o Homem de Lagoa Santa.
A Lapa Vermelha demanda cuidados que implicam na permissão de visitação apenas para pesquisadores autorizados. A Unidade de Conservação, criada em 2010, ajuda a preservar tanto o patrimônio natural quanto cultural da área.
Fonte: Guia da Cerveja.