O STF (Supremo Tribunal Federal) derrubou o trecho da reforma trabalhista que permite a cobrança de honorários a trabalhadores que ficarem vencidos em processos judiciais, mesmo que sejam considerados hipossuficientes e cumpram os requisitos para ter acesso à Justiça gratuita.
O placar do julgamento foi 6 a 4. Os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber votaram para reverter as mudanças na legislação trabalhista aprovadas pelo Congresso em 2017, enquanto Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Kassio Nunes Marques e Gilmar Mendes se posicionaram no sentido oposto.
Assim, foi revogada a norma que determinava que o empregado poderia ser obrigado a usar recursos conquistados em outros processos para quitar honorários cobrados na ação em que ficou vencido.
A decisão representa uma derrota à reforma trabalhista, uma vez que a autorização para ampliar as hipóteses de cobrança à parte que perdeu o litígio era considerada um dos pilares das alterações na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Na época da discussão do tema no Legislativo, parlamentares afirmaram que a medida era importante para desestimular o ingresso de novas ações e desafogar o Judiciário para torná-lo mais eficiente.
No STF, porém, prevaleceu o entendimento de que a norma viola a Constituição pelo fato de limitar o acesso à Justiça a pessoas menos favorecidas. O Supremo julgou procedente a ação apresentada pela PGR (Procuradoria-Geral da República) contra esse trecho da reforma trabalhista.
Por outro lado, por maioria, os magistrados decidiram manter a mudança na lei que autoriza que o usuário da gratuidade da Justiça seja cobrado a pagar as custas processuais caso se ausente, sem justificativa, à audiência judicial da causa em tramitação.
O julgamento do caso foi iniciado em 2018, mas foi interrompido por pedido de vista (mais tempo para análise) de Fux e retomado na última semana.
Relator do caso, Barroso ficou vencido ao defender a possibilidade de trabalhadores serem condenados a pagar honorários caso percam uma ação apresentada contra uma empresa. O magistrado defendeu que a medida era proporcional e não limitava o acesso ao Judiciário.
Se o trabalhador perder a ação, ele continua não tendo que pagar nada: nem perícia, nem honorário de sucumbência, nem custas. Apenas se ele, em outra ação, ganhar um volume de recursos superior ao teto da previdência (R$ 5.645), ele teria que gastar 30% do que ganhou além do teto para pagar os honorários do advogado da outra parte e para pagar a perícia. Portanto, o acesso à justiça não é afetado aqui.
Fachin foi o responsável por dar o primeiro voto no sentido contrário. Ele afirmou que não seria correto vincular os valores conquistados pelo trabalhador em um processo a outra ação em tramitação.
O direito fundamental à gratuidade da Justiça, notadamente atrelado ao direito fundamental de acesso à Justiça, não admite restrições relacionadas à conduta do trabalhador em outro processo trabalhista, sob pena de esvaziamento de seu âmbito de proteção constitucional, disse.
Moraes seguiu a mesma linha e afirmou que a norma fere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. [O trabalhador] comprovou a insuficiência de recursos, foi tido como hipossuficiente, obteve gratuidade e mesmo assim vai ter que pagar?, argumentou.
E concluiu: “Simplesmente entender que, por ser vencedor em um outro processo, já o tornou autossuficiente, seria uma presunção absoluta da lei, que fere a razoabilidade”.
Fux divergiu da maioria e seguiu Barroso. Ele disse que a medida era importante para reduzir a demanda do Judiciário. Esses dispositivos não vedam o acesso à Justiça, eles geram uma externalidade positiva de desincentivo a demandas frívolas, afirmou.
Na ação apresentada ao STF, a PGR afirmou que a reforma promoveu uma “intensa desregulamentação da proteção social do trabalho”.
“Com propósito desregulamentador e declarado objetivo de reduzir o número de demandas perante a Justiça do Trabalho, a legislação avançou sobre garantias processuais e viola direito fundamental dos trabalhadores pobres à gratuidade judiciária, como pressuposto de acesso à jurisdição trabalhista”.
Rosa Weber concordou com a PGR e disse que a alta quantidade de processos em curso no Judiciário não decorre dos direitos concedidos a pessoas com acesso à Justiça gratuita. Ela também criticou a autorização para que o empregado use recursos conquistados em outro processo para pagar honorários relativos à ação em que ficou vencido.
A medida desconsidera a realidade de que frequentemente os créditos assim subtraídos do trabalhador hipossuficientes já poderão ter sido por ele comprometidos com despesa básica de seu sustento.
DECISÃO DEVE LEVAR A UM AUMENTO DE AÇÕES NA JUSTIÇA, DIZEM ADVOGADOS E JUÍZA
O ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho) Ives Gandra, que presidia o tribunal na época em que a reforma foi aprovada, e para quem as mudanças na CLT foram o maior legado do governo Michel Temer (MDB), diz que o princípio básico de um processo responsável está mantido.
Ou seja, quem demanda responde por aquilo que está pedindo indevidamente. Esse princípio foi preservado, disse à reportagem. A única coisa que ficou [alterada] é em relação a quem tem a gratuidade de Justiça. Agora, a gente vai ter que exigir que não haja somente a declaração de miserabilidade, a pessoa vai ter que provar [para ter o direito à gratuidade].
A advogada Caroline Marchi, do Machado Meyer, diz considerar que o resultado foi esperado, mas teme pela falta de critérios para aplicação da gratuidade. O que se vê, na prática, é que uma simples declaração é acolhida pelo juiz.
Na avaliação ela, a obrigação de pagamento dos honorários da outra parte gerou uma melhoria nas petições iniciais, que passaram a incluir apenas pedidos ligados à relação entre trabalhador e empresa.
Antes vinham petições imensas, cheias de pedidos que o próprio empregado tinha ciência que não conseguiria.
Para o advogado Marcel Zangiácomo, do escritório Galvão Villani, Navarro e Zangiácomo Advogados, o efeito da decisão será o aumento de novas ações na Justiça do Trabalho, com reflexos sobre o tempo de duração dos processos, uma vez que as varas ficarão sobrecarregadas.
É uma decisão que continua privilegiando ações aventureiras, nas quais se pede de tudo, sem qualquer respaldo fático e legal, diz. Na avaliação dele, a alteração trazida pela reforma evitava que trabalhadores entrassem com ações nas quais havia pouca chance de vitória e com pedidos exagerados. Esse tipo de comportamento é o que o meio jurídico costuma chamar de litigância excessiva ou indiscriminada.
A juíza do trabalho Ana Fischer, que integrou a comissão de redação do projeto de lei que mudou a CLT em 2017, diz que a decisão do Supremo enterra a reforma trabalhista.
Testemunhei que o que motivou as mudanças foi um alegado (e generalizado) sentimento de que existia no Brasil uma litigância irresponsável, escreveu a magistrada em uma rede social.
Segundo ela, havia a percepção de que a ausência de custos ou riscos para quem apresentava as ações era uma das causas do grande volume de ações trabalhistas.
E, de fato, mesmo com a resistência por parte da magistratura do trabalho, a introdução da sucumbência teve forte repercussão no número de ações trabalhistas distribuídas, que chegaram a cair cerca de 30% já no ano seguinte à entrada em vigor da nova lei.